Educação híbrida - uma transformação progressiva e irreversível

 José Moran

Matéria feita a partir desta entrevista comigo, publicada na Revista da Rede de Escolas Notre Dame, disponível em https://www.nd.org.br/downloads/210817-revista-30-web.pdf p. 14-18.

 - Quais considera que são as vantagens do ensino híbrido?

O ensino híbrido, na sua concepção básica, combina e integra atividades didáticas em sala de aula com atividades em espaços digitais visando oferecer as melhores experiências de aprendizagem à cada estudante. No Ensino Híbrido o foco está mais na ação pedagógica dos docentes (no planejamento, desenvolvimento e avaliação do processo). O conceito de educação híbrida é mais abrangente ao envolver a toda a comunidade escolar no redesenho das melhores combinações possíveis na integração de espaços, tempos, metodologias, tutoria para oferecer as melhores experiências de aprendizagem à cada estudante de acordo com suas necessidades e possibilidades.

A educação híbrida ativa traz importantes benefícios e desafios para os estudantes, porque eles têm acesso personalizado aos conteúdos, materiais, pesquisas e desafios a qualquer hora, por qualquer aparelho e no ritmo desejado. Desenvolvem também maior autonomia pela possibilidade de escolher percursos mais adaptados às suas necessidades e expectativas. Ao mesmo tempo desenvolvem as competências comunicacionais e avaliativas pela riqueza e diversidade de atividades e projetos com diferentes grupos dentro e fora do espaço escolar, nos espaços presenciais e digitais, em momentos síncronos e assíncronos.

Os modelos híbridos favorecem uma combinação ideal entre personalização, colaboração e tutoria/mentoria. Uma parte do percurso pode ser feita pelo estudante, dentro do seu ritmo e circunstâncias, o que implica em calibrar e acompanhar essas atividades para que todos se envolvam e cheguem aonde professores e escolas planejaram. Outra parte do percurso é feito em grupos e classes, é mais colaborativo e supervisionado diretamente pelos docentes. Este percurso tanto pode acontecer na sala de aula física, na digital ou em ambos os espaços simultaneamente ou de forma assíncrona. O percurso se completa através da mediação, tutoria e mentoria do docente, com alguém que faz grandes perguntas, orienta e ajuda a tornar visível a aprendizagem e o desenvolvimento de competências no percurso.

Outro benefício é a possibilidade do docente dedicar mais tempo às dúvidas e ao acompanhamento mais próximo e individual dos alunos na aprendizagem. Com o apoio da tecnologia, o professor também consegue visualizar, coletar e analisar dados sobre as aprendizagens dos alunos de forma mais simples e precisa. 

 Isso pressupõe ter uma boa plataforma digital com inteligência para fornecer análises de dados relevantes e atualizados para docentes, estudantes, gestores e pais.

 

 

 

- Há desvantagens ou pontos a serem aperfeiçoados?

O ensino híbrido traz alguns desafios para os docentes. Os papéis se ampliam e modificam bastante, porque todo o processo de ensinar e de aprender é mais flexível e está mais centrado nos estudantes. E isso exige uma mudança cultural e de postura. O professor é menos transmissor e mais desenhador de processos, experiências e atividades para serem realizadas tanto em espaços físicos como nos digitais e nos momentos síncronos e assíncronos. É um design mais complexo, exige maior domínio de plataformas e aplicativos digitais e saber acompanhar os percursos de cada aluno, do grupo e da classe. Este processo exige uma flexibilidade maior no planejamento, desenvolvimento e avaliação. O planejamento mais aberto e dialogado é menos previsível e isso pode trazer alguns riscos de que algo não saia conforme o previsto ou dê errado.

As condições de trabalho de muitos docentes também não são satisfatórias: trabalham em mais de uma escola ou sistema de ensino, dão muitas classes, tem muitos alunos e isso dificulta sobremaneira o planejamento e acompanhamento dos modelos híbridos.  É cansativo ficar muito tempo online e manter a motivação dos estudantes e dos docentes em períodos longos. Sem condições objetivas, é heroico pedir que os docentes sejam inovadores.

Outros desafios do híbrido: mudar a cultura tradicional do docente (transmissor) e do aluno (que obedece) para um modelo ativo mais participativo.  É um processo mais complexo, que exige mais tempo e dedicação ao planejamento ativo (online-offline), ao acompanhamento personalizado e à avaliação mais participativa. Outro grande desafio é a precariedade da infraestrutura (acesso, equipamentos) em muitas escolas e residências e a fragilidade no desenvolvimento das competências digitais de uma parte dos docentes, discentes e também das famílias. Essa desigualdade inviabiliza que tenhamos projetos de educação híbrida em larga escola para a maioria dos estudantes, que são pobres e não tem condições objetivas de estudar remotamente em casa. Por enquanto os modelos híbridos contemplam uma parte da população, que tem melhores condições econômicas, acesso tecnológico e domínio digital mais desenvolvidos.

 

- De que maneira definir as melhores ferramentas para ensino presencial e remoto?

Precisa conhecer a situação dos estudantes, dos docentes e da política institucional em relação às plataformas e tecnologias digitais. Quais são as diretrizes? A Escola tem uma plataforma acadêmica fácil de acessar por qualquer dispositivo? Essa plataforma está integrada a todos os serviços que professores, estudantes e pais precisam (administrativos, financeiros...? Os professores têm autonomia para planejar, gerenciar e avaliar suas atividades didáticas ou precisam seguir roteiros de aulas predefinidos (ex. de Sistemas de Ensino parceiros)? Os professores têm uma boa formação em metodologias ativas e utilização dos aplicativos na sua área de atuação? Os gestores escolares precisam também ter um conhecimento real do acesso remoto e do domínio digital dos seus estudantes. Isso é importante para prever as atividades com plataformas síncronas ou não, com o uso de materiais de comunicação por WhatsApp ou outras redes sociais, definir como interagir com estudantes que têm acesso muito precário (roteiros e atividades impressos) e escolher a melhor estratégia de entrega e recebimento. São tantas as opções disponíveis que não é fácil escolher. Mas o que recomendo é, para as escolas que estão em um estágio incipiente de domínio tecnológico, que comecem pelas plataformas e aplicativos básicos (como Google Sala de aula, incluindo todos os aplicativos de compartilhamento fácil como Google Docs, formulários, Jamboard, Padlet, Flipgrid, Mentimeter) e ir ampliando esse repertório aos poucos com o compartilhamento de práticas, workshops e tutoria dos professores mais avançados em relação aos que têm mais dificuldades. Há também inúmeros cursos e vídeos online sobre a instalação e utilização de tecnologias para cada área de conhecimento e nível de ensino. Muitas escolas já têm plataformas mais robustas, integradas e com uma boa análise de dados do percurso de cada estudante e da atuação de cada docente. É um campo em intenso desenvolvimento, com o apoio de muitas empresas jovens que trazem soluções para tornar o processo de ensino e aprendizagem mais personalizado, participativo e visível para todos.

 

- O que deve ser considerado nas aulas remotas, para que não se tornem cansativas? Como distribuir o tempo e pensar em atividades e recursos?

A situação é diferente para quem trabalha com crianças pequenas ou maiores. Crianças pequenas precisam de muita interação lúdica, muito contato visual, movimentação corporal, participação em desafios, jogos, músicas. As atividades precisam ser curtas e intensas (para os que têm acesso síncrono). Se não há esse acesso síncrono, professores podem, por exemplo, gravar pequenos vídeos orientadores para os pais, com a sequências de atividades para serem realizadas em casa pelas crianças, com o apoio dos mesmos e prevendo como essas atividades serão devolvidas para os docentes.

Para crianças que já sabem ler e escrever e para os alunos maiores, os professores podem preparar alguns materiais interessantes (vídeos, textos, pesquisas iniciais) para um processo de aula invertida. Que os estudantes se preparem no seu ritmo e tempo possíveis e assim estarem prontos para participar de desafios, debates, tirar dúvidas, realizar projetos em pequenos grupos e com a turma inteira em momentos síncronos. Uma das sequências que costumam dar resultado é: Aula invertida (preparação) + rápida retomada em momento síncrono (pequena explicação de questões nas quais os estudantes mostram mais dificuldades. A seguir proposta de uma atividade participativa (desafio, jogo, projeto em grupos com tempo definido e alguns papéis: redator, cronometrista...), depois tempo para apresentação dos resultados (em murais digitais como o Padlet, o Jamboard, etc) tempo para uma avaliação do que se aprendeu e do processo (feed back imediato, rubricas, portfólio)

 

- Quais são os benefícios de trabalhar com as metodologias ativas e qual o papel do professor no uso delas?

As metodologias ativas engajam muito mais os estudantes; eles se sentem muito mais motivados, porque percebem na prática como o conteúdo se relaciona com a vida e se aplica no cotidiano. Com as metodologias aprendem com a experiência, com estratégias diversificadas (projetos, problemas, jogos, desafios, construindo histórias) e com a reflexão oferecida por materiais relevantes conseguem desenvolver competências cognitivas e pessoais e sociais. A combinação de metodologias ativas com modelos flexíveis -em que podem  aprender tanto de forma assíncrona e síncrona, em  espaços presenciais e digitais -  é fundamental  para o desenho de estratégias diferentes e adequadas para cada idade e situação em que se encontra cada aprendiz  e para que os docentes trabalhem tanto individualmente (cada um com seus estudantes) como em grupo, desenhando alguns projetos mais integradores, de forma mais interdisciplinar (como os projetos STEAM). Metodologias ativas se tornam relevantes com educadores criativos, humanos e profundamente acolhedores.

  - Quais são os maiores desafios do ensino híbrido para os professores e alunos?

Além dos desafios apontados há pouco, os modelos ativos híbridos fazem mais sentido quando são planejados institucionalmente e de forma sistêmica, como componentes importantes de reorganização do currículo por competências e projetos, de forma flexível, com diversas combinações de acordo com as necessidades do estudante (personalização), intenso trabalho ativo em equipes, tutoria/mentoria (projeto de vida) com suporte de multiplataformas digitais integradas. Os gestores podem sinalizar à comunidade escolar o que é viável imediatamente (formação em metodologias, em competências digitais) e qual é o projeto de inovação a médio prazo (a donde queremos chegar e quais serão as etapas de envolvimento da comunidade neste processo).

O desafio é de termos mais gestores e educadores bem-preparados, empreendedores, criativos e solidários, que gostem de aprender ativamente, vivam o que aprendem e compartilhem o que aprendem e vivem com a comunidade escolar.

Os modelos ativos híbridos dependem também de políticas públicas sólidas, coerentes, continuadas e com visão de longo prazo (o que não vemos atualmente).

Apesar dos avanços, os desafios são grandes tanto de mudança de cultura de todos, de desenho de estratégias e de implementação de políticas de inovação no curto e médio prazo.

 - É possível projetar quando a educação híbrida será amplamente difundida em todas as escolas e o que falta para isso?

A realidade do Brasil é muito diversa e complexa.  Não é possível que todos avancemos rapidamente: temos escolas com propostas diferentes e atendendo a expectativas sociais diferentes (mais ou menos conteudistas, mais tradicionais ou progressistas, com mais ou menos recursos). Na Educação Básica predominará a aprendizagem ativa em ambientes presenciais com integração - sempre que necessário/possível - de plataformas, aplicativos e atividades digitais. Continuarão os modelos mais conhecidos, como a aula invertida, rotação por estações, rotação individual. Mas no Ensino Médio e nos anos finais do Fundamental testaremos modelos mais personalizados e online, como os modelos flex (roteiros personalizados online com o professor por perto), a la carte (fazer um, ou mais módulos online) ou virtual enriquecido (parte presencial, parte online). A hibridização será progressiva, de acordo com a idade e o avanço do estudante no currículo e as condições de acesso das escolas, docentes e estudantes. É um processo complexo, desigual, mas de transformação progressiva irreversível.

 

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