“A escola se transforma mais lentamente do que desejamos e em ritmos diferentes”


Nesta entrevista à Geekie falo da complexidade das transformações que vivenciamos na educação, dos avanços e dificuldades e dos novos desafios que enfrentamos todos, individual e coletivamente. Abraço. Moran.


A entrevista:


Referência em inovação na educação e metodologias ativas, José Moran, aponta que empreendedorismo e mudança de mentalidade são essenciais para transformar a escola tradicional em inovadora
A transformação da escola depende de mudança de mentalidade, da disposição para ter lideranças que conciliem empreendedorismo com humanização, encontrar caminhos e exemplos adequados e da formação de toda a equipe pedagógica para as demandas da educação deste século. Esse caminho não é simples, afinal, o professor José Moran, da Universidade de São Paulo (USP), esperava que toda essa revolução estivesse pronta no ano 2000. Estamos 18 anos atrasados. Em entrevista exclusiva ao InfoGeekie, o professor relembra sua visão da década de 1980 à luz das dificuldades enfrentadas pela inovação até os dias atuais e comenta sobre caminhos e necessidades da aliança entre educação e tecnologia.
Doutor em Comunicação pela USP, Moran é referência em inovação na educação e metodologias ativas. Ele é autor dos livros “A educação que desejamos: novos desafios e como chegar lá” (Editora Papirus, 2011) e co-autor de “Metodologias ativas para uma nova educação inovadora” (Penso, 2017), “Novas tecnologias e mediação pedagógica” (Papirus, 2012) e “Educação à Distância: Pontos e Contrapontos” (Summus, 2011). A carreira, dedicada à relação entre inovação e educação, também é marcada por ter sido professor da disciplina “Novas Tecnologias” na Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) e pela fundação da Escola do Futuro. Neste projeto, Moran pesquisou as transformações na educação com a chegada da internet.

Por falar na rede mundial de computadores, em 2016 o educador participou da Bett Educar, evento para o qual ele volta este ano. À época, Moran apostava no uso das redes sociais em sala de aula por ser uma forma de potencializar a educação colaborativa. A aposta continua neste potencial, mas hoje o professor faz ressalvas relacionadas ao uso excessivo da internet que podem levar à dependência, no fechamento em bolhas de pensamento único e nas fake news
Esses pontos de atenção são elencados pelo educador para reforçar que “a aprendizagem em rede é um componente fundamental da vida atual” e que as escolas estão tentando entender como ensinar e aprender nesse mundo híbrido. O ponto positivo deste processo, segundo ele, é que atualmente as equipes docentes estão deixando a visão negativa de lado e passam a pensar nas formas de compartilhamento e na incorporação de plataformas no processo de aprendizagem no lugar de simplesmente proibir o acesso às tecnologias digitais.

Participação na Bett Educar 2019
Durante a entrevista, Moran também destacou a importância do empreendedorismo tanto para gestores como também e principalmente para o desenvolvimento de estudantes:
A escola privilegiou (privilegia) o caminho da previsibilidade (resposta certa) e da “obediência” (ser bom aluno) em detrimento da criatividade, desafios e empreendedorismo.  Muitos professores recebem uma formação deficiente (teórica e prática), trabalham em duas ou três escolas diferentes para poder ter um salário razoável. Isso dificulta a pesquisa e a dedicação e a continuidade da aprendizagem ativa na docência.
Em maio, Moran irá participar da Bett Educar 2019, o maior evento de Educação da América Latina. Os participantes do evento terão duas oportunidades para assistir à palestra do professor:no dia 14, Moran irá dividir o espaço de fala com o mestre em Tecnologias Emergentes em Educação, José Motta Filho, para abordar o tema “Transformando a educação com metodologias ativas e modelos híbridos”; já no dia 15, ele irá responder à pergunta “Como transformar uma escola convencional em uma escola inovadora?”, tema de sua segunda fala no evento.

Confira a entrevista:
InfoGeekie: Quando o senhor esteve em um bate-papo on-line aqui na Geekie, em 2016, o senhor contou um pouco sobre o Programa Escola do Futuro, da USP, de 1989, e sobre as expectativas que haviam naquela época, na década de 1980, sobre as escolas brasileiras já terem incorporado as tecnologias em seu cotidiano até o ano 2000. Na ocasião, o senhor comentou que estávamos 16 anos atrasados; agora já são 18. Qual é o motivo deste atraso de quase duas décadas?

José Moran: Olhando em retrospectiva, realmente estamos atrasados não só nas tecnologias, mas principalmente na transformação das escolas em todas as dimensões. Pessoalmente, como professor-pesquisador, olhava muito para as possibilidades das tecnologias digitais, para novas formas de aprender e ensinar, uma nova sala de aula, modelos híbridos, mas subestimei as dimensões culturais, gerenciais e econômicas do processo de transformação como um todo num país tão imenso. 
Hoje há uma consciência maior na educação básica e superior dos desafios, há maior consenso sobre algumas diretrizes (BNCC), temos experiências exitosas na educação de crianças, jovens e adultos. Mas sabemos que falta muito para oferecer formação de qualidade para a maioria dos estudantes mais carentes e de que a escola incorpore todas as  possibilidades de aprender num mundo conectado.

InfoGeekie: Pensando no atraso, qual é o risco de a escola continuar como está? Quais atores da comunidade escolar seriam os mais prejudicados com essa resistência à inovação?
Moran: Há um movimento de transformação mundial em todas as dimensões, também na educacional, que vai além da escolarização. Todos precisamos estar atentos para aprender continuamente, de forma ampla e ao longo da vidaA escola se transforma mais lentamente do que desejamos e em ritmos diferentes. Isso nos atrasa como sociedade, compromete o futuro pessoal e social do país. Os mais prejudicados são crianças e jovens – principalmente os mais pobres – que precisam ter uma formação básica de boa qualidade para empreender numa vida futura incerta e longa.

InfoGeekie: A Base Nacional Comum Curricular pode impulsionar essa inovação necessária já que coloca o digital em diversas competências – inclusive em uma própria focada nas habilidades dos estudantes com a tecnologia?
Moran: A BNCC é um referencial importante para todos. A implementação será progressiva, demorada e desigual. A formação docente para trabalhar as dez competências, entre elas as digitais, é decisiva, assim como melhorar as condições de trabalho e a sua valorização social. A BNCC dependerá também da melhoria da qualificação dos gestores tanto na rede pública como privada e de trazer os pais e a sociedade como um todo para uma participação maior.

InfoGeekie: Em um dos textos de seu blog (Por onde começar a transformar nossas Escolas?), o senhor defende que o primeiro e mais importante passo para a inovação é a “mudança mental e cultural”. Um caminho para isso é a sensibilização pelo contato com exemplos que deram e dão certo. Considerando a questão da heterogeneidade na educação e que nenhuma escola é igual à outra, quais são os fatores/critérios/particularidades que as escolas precisam observar nos exemplos de instituições inovadoras para buscar inspiração?
Moran: As escolas mais interessantes conseguem criar um clima de confiança, de diálogo, de participação efetiva entre todos – gestores, docentes, estudantes, famílias e organizações próximas. Escolas interessantes têm excelentes gestores e docentes, criativos, empreendedores e que dialogam sempre. Esse é um dos problemas complicados para inovar:  a dificuldade de aprender a conviver de verdade, de chegar a acordos apesar das diferenças e de ter lideranças que conciliem empreendedorismo com humanização. As escolas interessantes enfatizam a aprendizagem por experimentação, por projetos. Equilibram a personalização (escolha de itinerários – com apoio de plataformas digitais), aprendizagem em times e a tutoria/mentoria (projeto de vida) e a avaliação mais formativa do que somativa. 
Outro diferencial é a importância do contato com o entorno, com o mundo, não só para conhecê-lo, mas para contribuir com soluções reais, com contato com a vida, com a cidade, com o mundo (redes, comunidades) com as áreas profissionais desde o começo; uma troca rica com o entorno. É a escola-serviço, em que os alunos aprendem em contato com a comunidade e desenvolvem projetos que beneficiam essa mesma comunidade.

InfoGeekie: Em outro artigo (“Transformando as pessoas, para transformar as Escolas”), o senhor lamenta o fato de “num mundo conectado – que oferece infinitas possibilidades de atualização – constatar o conformismo de muitos docentes e gestores, que repetem modelos superados, dão aulas de forma burocrática”. Qual é a origem desse conformismo na Educação? Qual conselho o senhor daria a um gestor escolar que enfrenta resistências similares a esta na equipe docente de sua escola?
Moran: A escola avançou na quantidade (a grande maioria estuda), mas ainda está ancorada em um modelo predominantemente conteudista e transmissivo. A escola privilegiou (privilegia) o caminho da previsibilidade (resposta certa) e da “obediência” (ser bom aluno) em detrimento da criatividade, desafios e empreendedorismo.  Muitos professores recebem uma formação deficiente (teórica e prática), trabalham em duas ou três escolas diferentes para poder ter um salário razoável. Isso dificulta a pesquisa e a dedicação e a continuidade da aprendizagem ativa na docência.
Diria para os gestores sensibilizar os docentes mostrando exemplos, experiências de quem está inovando, primeiro dentro da própria escola (que sempre existem). Criar um grupo de inovação com esses docentes, alunos e pais. Fazer ações de formação continuada, mão na massa com docentes. Compartilhar as melhores práticas. Envolver estudantes também no apoio à formação docente, principalmente no uso de tecnologias digitais. 
Não é suficiente planejar metodologias ativas de forma isolada. Elas fazem sentido em um contexto de mudança estruturada e sistêmica. Assim as metodologias ativas podem revelar o seu verdadeiro potencial, contribuindo para redesenhar as formas de ensinar e de aprender, a organização da escola, dos espaços, da avaliação, do currículo, da certificação.

InfoGeekie: Uma das resistências atuais de professores e professoras quando a sugestão é inserir metodologias ativas em seus planejamentos pedagógicos é a perda de autonomia de sua aula. Alguns e/ou algumas docentes acreditam que seus métodos não precisam evoluir e continuam única e exclusivamente na aula expositiva. Como é possível sensibilizar esses educadores para a necessidade de inovação em suas práticas?
Moran: Para inovar não precisa demonizar a aula expositiva. Ela é útil em momentos específicos, por exemplo para iniciar ou concluir um determinado tema. 
Quanto mais canais de informação e compartilhamento temos, mais complexo se torna o processo de análise, síntese e de apropriação pessoal. Isso justifica hoje a necessidade dos docentes trabalharem de forma mais integrada, dos estudantes mais colaborativa e de que haja também uma orientação mais personalizada, uma tutoria mais integradora, dada a diversidade de repertórios, tempos e ritmos muito diferentes dos estudantes.
O papel mais importante dos professores é apoiar e convencer os alunos de que podem evoluir em todas as dimensões, de múltiplas formas e por diversos caminhos, e que pela aprendizagem ativa e criativa podem transformar suas vidas, desenvolvendo níveis crescentes de competências cognitivas e socioemocionais. Para isso, os docentes precisam desenvolver essa mesma mentalidade neles, a vontade de evoluir, de transformar-se sempre
Pela complexidade de fazer a decantação entre tantas variáveis, visões e áreas de conhecimento e competências diferentes, faz sentido que os estudantes tenham docentes trabalhando de forma mais interdisciplinar e docentes/mentores, com um olhar mais abrangente, afetivo e personalizado para o desenvolvimento integral de cada aluno. 

InfoGeekie: Na última participação na Bett, em 2016, o senhor falou sobre a aposta da tecnologia aplicada na educação, em especial no uso das redes sociais. Naquela ocasião o senhor apontou como potencial para esse uso o fato de as redes serem colaborativas e voluntárias, afinal, só está nelas quem realmente quer estar. Como o senhor vê o uso dessas redes, hoje, nas escolas? Ele avançou desde essa última fala do senhor? Os educadores estão preparando os alunos para os riscos e oportunidades da internet?
Moran: Vivemos em mundos híbridos, onde tudo se mistura, de formas inimagináveis anos atrás. Crianças utilizam, desde bebês, celulares e ainda estamos tentando entender cientificamente que impacto isso tem no desenvolvimento individual e social. Os estudos ainda são contraditórios nas suas conclusões, mas todos precisamos aprender a viver esse novo mundo de forma que nos torne pessoas mais autônomas, colaborativas e responsáveis socialmente. 
Temos problemas no uso excessivo que pode virar dependência, no fechamento em bolhas de pensamento único, nas fake News. A aprendizagem em rede é um componente fundamental da vida atual. As escolas estão tentando entender como ensinar e aprender nesse mundo híbrido, conectado. Estamos superando a visão só negativa de proibir o acesso às tecnologias digitais, de ficar só na defensiva e avançamos lentamente nas formas de compartilhamento, na incorporação de plataformas mais inteligentes, de aplicativos para gerenciar todos os atores e processos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Os mais velhos, como eu, experimentamos na pele as profundas mudanças que a Internet trouxe para nossas vidas. Crianças e jovens já nasceram nesse novo mundo, o consideram natural e não entendem por que a escola ainda resiste tanto a integrar-se mais abertamente a esse novo mundo.

InfoGeekie: O que os participantes da Bett podem esperar de sua participação nas duas palestras deste ano?
Moran: Compartilharei estas ideias, focando principalmente em “Como transformar a escola em todas as dimensões” – destacando o papel das metodologias ativas e dos modelos híbridos – neste mundo tão desafiador e complexo em que vivemos. As metodologias se expressam em três conceitos-chave tanto para docentes como para os aprendizes:  maker (exploração do mundo de forma criativo-reflexiva, utilizando todos os recursos possíveis – espaços-maker, linguagem computacional, robótica), designer (desenhar soluções, caminhos, itinerários, atividades significativas de aprendizagem) e empreender (testar ideias rapidamente, corrigir erros, realizar algo com significado). 


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