Educar crianças e jovens para um bom uso do digital


José Moran

 Atualmente, vivemos em um mundo híbrido, fi-digital, com fronteiras mais tênues e crianças e jovens cada vez mais conectados, também no Brasil.  Em 2022, 92% de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, cerca de 24 milhões, já eram usuários de internet no país, de acordo com a nova edição da TIC Kids Online Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). 86% possuem perfis em redes sociais. Mais da metade (56%) das crianças e adolescentes usam a internet sem limitação de tempo determinada pelos responsáveis.[1]

Crianças e jovens (entre 11 e 17 anos) passam em média quatro horas por dia no celular, seu companheiro constante, principalmente nas redes sociais, como o TikTok. Checam o celular em média 100 vezes por dia e recebem centenas de mensagens. O estudo foi conduzido pela Common Sense Media em parceria com a University of Michigan C.S. Mott Children's Hospital.[2]

Essa interconexão entre o mundo físico e o digital tem impactos significativos nas vidas de todos, influenciando a forma como nos comunicamos, trabalhamos, nos relacionamos, informamos, aprendemos e nos divertimos.

A comunicação tornou-se instantânea e global, permitindo que as pessoas se conectem em tempo real, independentemente da distância física. O trabalho ficou mais flexível, colaborativo. O entretenimento se ampliou de forma inimaginável. As compras online cresceram exponencialmente, mas continuamos valorizando a experiência presencial. O mesmo na educação: há um crescimento dos cursos online, híbridos, formais e informais, muito mais flexíveis.

A rápida evolução da tecnologia trouxe benefícios significativos, mas também desafios substanciais no que diz respeito ao desenvolvimento das gerações mais jovens. É extremamente importante que pais e educadores encontrem caminhos realistas e saudáveis de educar crianças e jovens para que se desenvolvam plena e equilibradamente em todas as dimensões, que hoje incluem também a digital com todas as suas possibilidades e desafios.

Visões críticas e otimistas sobre o digital

Críticos, como Nicholas Carr e Sherry Turkle, acreditam que o digital representa uma ameaça existencial para a humanidade. Eles argumentam que o digital está nos levando a um futuro de isolamento, alienação e perda de controle sobre nossas próprias vidas.

Pensam também que o avanço da tecnologia digital está trazendo mudanças profundas e muitas vezes negativas na sociedade. A automação levará à perda massiva de empregos, aumentando as desigualdades econômicas. Além disso, destacam preocupações sobre privacidade, vigilância em massa, vício em tecnologia, polarização social e ameaças à segurança cibernética. Há aumento da dependência das tecnologias digitais, da disseminação da desinformação e da invasão da privacidade como exemplos dos perigos do digital.

Os críticos alertam para a possibilidade de um futuro distópico, onde as pessoas perdem o controle sobre as máquinas, a inteligência artificial toma decisões prejudiciais e as relações humanas são prejudicadas pela dependência excessiva da tecnologia.

Otimistas, como Marc Prensky e Dan Tapscott, por sua vez, argumentam que as inovações tecnológicas trazem benefícios significativos, melhorando a eficiência, a comunicação, a educação e a qualidade de vida em geral. Acreditam que a automação pode criar novas oportunidades de emprego, liberando as pessoas de tarefas repetitivas para se concentrarem em trabalhos mais significativos e criativos. Destacam como as tecnologias podem resolver problemas, conectar comunidades e impulsionar a inovação. Há aumento do acesso à educação e à informação, incremento na participação cidadã e o desenvolvimento de novas formas de arte e entretenimento como exemplos dos benefícios do digital.

Meu olhar parte de uma perspectiva mais realista, próxima do meio termo entre essas duas posições extremas. O digital é um ambiente poderoso que pode ser usado para o bem e para o mal. O desafio é utilizá-lo de forma responsável e ética, de modo a maximizar seus benefícios e minimizar seus riscos.

Benefícios e desafios do digital para crianças e jovens

Alguns benefícios

O digital proporciona um acesso rápido e amplo a uma vasta gama de informações, auxiliando no aprendizado e na expansão do conhecimento. Plataformas digitais oferecem recursos educativos interativos, jogos educacionais e aplicativos que tornam o aprendizado mais envolvente e dinâmico.

Crianças e jovens podem se conectar com colegas e amigos em qualquer parte do mundo, facilitando a troca de experiências e perspectivas.

O uso de dispositivos digitais ajuda a desenvolver habilidades digitais essenciais, preparando as crianças e jovens para os desafios do mundo moderno. As redes sociais oferecem um espaço crucial para a expressão da identidade, interesses e criatividade dos adolescentes, contribuindo para o desenvolvimento saudável de sua autoimagem.

Ferramentas digitais proporcionam um meio para crianças e jovens expressarem sua criatividade através de criação de conteúdo, arte digital e produção multimídia.

Os jogos online são uma forma popular de entretenimento para crianças, jovens e adultos. Eles oferecem uma variedade de recursos e experiências interativas e desafios que podem ser muito atraentes e envolventes.

Recursos digitais podem oferecer suporte a crianças com necessidades especiais, facilitando a personalização do aprendizado e promovendo a inclusão.

 Alguns problemas

Os efeitos não são iguais para todos. Mas há um aumento no tempo de uso principalmente dos celulares. Muitas crianças estão trocando o mundo real pelo virtual. Hoje os eletrônicos como tablets e celulares são ofertados para a criança para que ela se distraia. É como uma “chupeta” digital. Crianças que passam muito tempo em frente às telas podem ter menor tempo para desenvolver habilidades motoras, linguísticas e cognitivas, como a leitura, brincadeiras ao ar livre e interações sociais significativas.

Há estudos que apontam que o uso exagerado por crianças e adolescentes pode afetar o desenvolvimento do cérebro e a concentração. Celulares e outras telas são uma fonte inesgotável de estímulos rápidos, que liberam dopamina de prazer e satisfação, e de alguma forma favorecem padrões adictivos e um hábito de selecionar estímulos cada vez mais rápidos e gratificantes[3].

Especialistas como David Greenfield, que estudam a internet, afirmam que o atrativo magnético das redes sociais surge da maneira como o conteúdo atua em nossos impulsos e conexões neurológicas, de modo que os consumidores acham difícil se afastar do fluxo constante de informações. Uma das tácticas utilizadas pelos dispositivos é a do "reforço intermitente", que cria a expectativa de que o jovem pode receber uma recompensa a qualquer momento e ela é imprevisível, assim como uma máquina caça-níqueis e ao mesmo é personalizada, adaptada aos interesses e gostos de cada um.[4]

A pressão por respostas rápidas e a sobrecarga de informações podem levar a altos níveis de estresse e dificuldades para desconectar. O uso excessivo do digital está frequentemente associado a um aumento nos níveis de ansiedade em diversas situações. As redes sociais, por exemplo, promovem comparações sociais que podem gerar sentimentos de inadequação, de autoestima, de validação constante, de sobrevalorizar a realidade dos outros. Além disso, a exposição constante a informações online, muitas vezes negativas, pode sobrecarregar os indivíduos, aumentando os níveis de estresse e ansiedade.

Crianças e jovens podem ser expostos a conteúdo inadequado, como violência, pornografia ou discurso de ódio, o que pode prejudicar seu desenvolvimento emocional e psicológico. Podem ficar assustadas, confusas ou traumatizadas. Em 2022, um canal de denúncia mantido pela SaferNet repassou ao Ministério Público Federal mais de 100 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil.

O aliciamento de crianças e adolescentes na internet é um fenômeno que se aproveita da vulnerabilidade emocional e social desses sujeitos, que buscam na rede uma forma de expressão e interação com seus pares. Muitas vezes, esses jovens não recebem a devida orientação e supervisão dos pais ou responsáveis sobre os riscos e as consequências de expor suas informações pessoais, imagens e sentimentos a desconhecidos. Os criminosos se infiltram em grupos, jogos e redes sociais que atraem o público infantojuvenil e se passam por amigos, confidentes ou admiradores, com o objetivo de seduzir, manipular e extorquir suas vítimas.”[5]

O ambiente digital pode facilitar o cyberbullying, com crianças e jovens sendo alvos de assédio online, o que pode ter impactos sérios em sua saúde mental. A exposição constante a padrões de beleza nas redes sociais pode contribuir para a pressão estética e a comparação social, afetando a autoestima

Também pode levar à dependência, que pode prejudicar o desenvolvimento social, emocional e acadêmico de crianças e jovens. A dependência aumenta o risco de depressão, ansiedade, fobias; de obesidade, sedentarismo, problemas de visão, de concentração em outras atividades e de dificuldades de relacionamento.[6]

Muitos jogos online adotam modelos freemium, são gratuitos, mas incentivam as compras oferecendo vantagens (Itens que facilitam a progressão no jogo, roupas ou personagens personalizados...), que criam desequilíbrios entre jogadores que pagam e os que não pagam, afetando a experiência de jogo.  Os custos associados às compras no jogo podem acumular-se rapidamente. A falta de consciência por parte dos pais sobre a extensão dessas compras ou políticas de reembolso restritivas também contribuem para que as crianças gastem mais do que o desejado.

 Educar crianças e jovens para um bom uso do digital

Educar as crianças para um bom uso do ambiente digital é um esforço colaborativo entre pais, educadores e sociedade em geral. A abordagem deve ser holística, abrangendo valores éticos, literacia digital, supervisão ativa e integração responsável da tecnologia na educação.

Educar crianças sobre o uso saudável dos dispositivos tecnológicos, os impactos das redes sociais na autoestima e o equilíbrio entre o mundo online e offline. Com essa consciência, eles poderão, com a ajuda da tecnologia, criar grandes facilidades e avanços a seu favor.

Não existem receitas prontas nem modelos preestabelecidos para lidar com essa geração de nativos digitais. Educar, tanto em casa como na escola, sempre será uma tarefa que exige paciência, persistência e consistência, independente da geração. E que não pode ser igual para todos. Cada criança tem suas peculiaridades. Por isso é importante evitar fazer comparações com as outras.

É essencial estabelecer uma comunicação aberta e honesta entre pais e filhos. As crianças devem sentir-se à vontade para conversar sobre suas atividades online, fazer perguntas e buscar orientação sem medo de punição. Os pais precisam saber negociar e estabelecer regras e limites para garantir o uso equilibrado e saudável das telas. Isso inclui o tempo que elas podem passar usando dispositivos digitais, os tipos de conteúdo que podem acessar e as pessoas com quem podem interagir online. A supervisão ativa é necessária, especialmente para crianças mais jovens. Ferramentas de controle parental podem ajudar a monitorar o tempo de tela, restringir o acesso a conteúdos inadequados e promover um ambiente digital mais seguro. No entanto, a confiança mútua e a comunicação aberta são tão importantes quanto os controles técnicos.

As crianças aprendem observando os adultos ao seu redor. Os pais precisam dar exemplo no uso da tecnologia de forma responsável. Conversar com os filhos sobre a tecnologia, dos benefícios (criatividade, conexão, aprendizagem) e dos perigos o uso excessivo, do cyberbullying, do vício em jogos e da exposição a conteúdo inapropriado. As crianças devem compreender a importância do respeito, empatia e privacidade online, assim como o entendimento de que suas ações digitais têm impactos no mundo real.  Encontrar também momentos para aprender com os filhos. Encorajá-los que nos ensinem as descobertas deles. Assim vão desenvolvendo sua autoconfiança, especialmente conforme vão entrando na fase escolar.

Com crianças é importante criar oportunidades de brincar ao ar livre. Crianças precisam de movimento para brincarem e viverem novas experiências. Priorizar atividades físicas, esportivas ou musicais. O contato com as artes como a música estimula a criança desenvolver as habilidades cognitivas e auxilia na sua forma de se comunicar com outras pessoas.  

Presença física não é o mesmo que presença emocional. Estar disponível emocionalmente é o que abastece não somente uma criança, mas qualquer ser humano. Ficar por perto somente de corpo presente não conecta. O que conecta é estar por perto de corpo e alma, escutar com atenção, olhar nos olhos, demonstrar desejo de estar por perto.

Além disso, os pais e educadores desempenham um papel crucial como modelos de comportamento. Ao demonstrar o uso saudável e equilibrado da tecnologia, eles inspiram as crianças a seguirem um exemplo positivo. Estabelecer limites de tempo, promover o diálogo aberto sobre experiências online e participar ativamente do mundo digital das crianças são maneiras eficazes de orientá-las.

A literacia digital é outra dimensão fundamental na educação digital. Ensinar as crianças a pesquisar informações, avaliar fontes, entender a segurança online e proteger sua privacidade são habilidades essenciais. Ao promover uma mentalidade crítica em relação ao conteúdo digital, as crianças se tornam mais capazes de distinguir entre informações confiáveis e potencialmente prejudiciais.

Integrar pais e escola na educação digital é importante para garantir que os alunos desenvolvam habilidades digitais saudáveis e seguras. Ao incorporar ferramentas digitais no processo de aprendizado, as crianças desenvolvem habilidades práticas, aprendem a resolver problemas e a utilizar criativamente as tecnologias. Também é muito útil oferecer workshops e palestras educativas para os pais, abordando temas como segurança online, controle parental e o impacto das redes sociais.

 

Para saber mais:

BORELLI, Alessandra. Crianças e adolescentes no mundo digital. Orientações essenciais para o uso seguro e consciente das novas tecnologias. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2022.

OCDE – Santillana. Educación e infancia en el siglo XXI. Bienestar emocional en la era digital

TORRES, Eva. Era Digital: Como educar crianças e adolescentes no uso consciente do celular, internet e redes sociais? eBook Kindle



[1] https://cetic.br/pesquisa/kids-online/

[2] https://www.commonsensemedia.org/research/constant-companion-a-week-in-the-life-of-a-young-persons-smartphone-use

[3]Digital dementia in the internet generation: excessive screen time during brain development will increase the risk of Alzheimer's disease and related dementias in adulthood. Laurie A. ManwellMerelle TadrosTiana Marie CiccarelliRoelof Eikelboom 27 Jan 2022-Journal of Integrative Neuroscience-Vol. 21 1, Iss: 1, pp 28 – 28. Disponível em https://typeset.io/papers/digital-dementia-in-the-internet-generation-excessive-screen-3a8ek7a4

 [4] Clinical Considerations in Internet and Video Game Addiction Treatment. Disponível em

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1056499321000869

 [5] SILVA, J. R. Aliciamento de crianças e adolescentes na internet: uma análise jurídica e social. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. P. 151.

[6] O que você precisa saber sobre dependência tecnológica e tem medo de perguntar

Nicolas de Oliveira Cardoso, Cristiane Flôres Bortoncello. Sinopsys, 2023.

José Moran

Professor, escritor e pesquisador de projetos educacionais inovadores

Autor do blog Educação Transformadora  moran.eca.usp.br

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