Cenários apontam para uma educação mais aberta, personalizada, experiencial e humanizadora
Venho acompanhando a evolução da educação nas últimas décadas. Com o impacto da Internet, ao participar do Projeto Escola do Futuro, o horizonte que os especialistas desenhavam era de uma mudança profunda no ecossistema educacional. Os estudantes poderiam estudar em qualquer lugar, a qualquer hora e de múltiplas formas e o professor poderia estar dentro de um espaço escolar convencional ou em qualquer lugar e que as escolas e faculdades seriam organizações muito mais abertas e flexíveis. Hoje, olhando em retrospecto, esse cenário está muito mais próximo, embora com muitas desigualdades e diferenças.
Há uma convergência maior na visão de que as
transformações na educação são necessárias. As instituições estão evoluindo, em
ritmos bastante diferentes. No Ensino Superior a ida obrigada ao digital
durante a Pandemia, mesmo que forçada e sem muito planejamento - como foi longa
- despertou uma cultura de que o digital é um ambiente em que é possível
aprender com bastante qualidade. Professores, alunos e gestores estão mais
abertos a mudanças; voltaram diferentes, num cenário de maior ansiedade e
stress. Assim como em outras áreas do cotidiano, os modelos híbridos e digitais
são mais aceitos e apoiados. Muitos alunos não querem ir todo o dia a uma sala
de aula, assim como no trabalho querem combinar dias presenciais com dias de
trabalho remoto. Os cursos digitais (a distância) crescem mais do que os
presenciais, por motivos econômicos, mas também de conveniência: maior flexibilidade
e diminuição de custos. A flexibilidade é importante para atender à maioria dos
estudantes que precisa trabalhar para poder fazer uma faculdade. O problema
está nos cursos com materiais de prateleira, sem muita interação e experimentação.
Cursos com preços acessíveis demais hoje, dificilmente conseguem aliar preço e
qualidade.
A visão dos pesquisadores sobre as tecnologias também
foi evoluindo. Anos atrás as tecnologias eram instrumentos de apoio para o
ensino e a aprendizagem. Isso é insuficiente: São ambientes imprescindíveis
para todo o ecossistema educacional, na gestão e no pedagógico. São ambientes
poderosos, autônomos. Até há pouco, as tecnologias afetavam as atividades mais
previsíveis, repetitivas; agora as tecnologias começam a impactar também as profissões
criativas, entre elas a docência. Como eu outras áreas, há um redesenho dos
currículos, das metodologias, das formas de gestão. O conteúdo é mais
gameficado e personalizado. Os professores serão em menor número, mais
qualificados e trabalharão de forma mais integrada.
A realidade evolui mais do que a regulação (é normal).
Legalmente temos duas modalidades: presencial e a distância. Na realidade
começam a ser ofertados quatro modelos: cursos presenciais, semipresenciais (com
diversas configurações), cursos live (mais síncronos) e digitais (mais
assíncronos). É um período de embates e tensões por causa desta evolução
contraditória, entre a prática e a legislação e pela qualidade divergente das
ofertas.
Temos cursos que atendem a alunos mais privilegiados
(que podem dedicar-se integralmente com ou sem bolsa) e cursos para a maior
parte dos alunos que trabalham ou com baixa renda familiar. Os cursos “premium”,
oferecidos por IES privadas e públicas, estão evoluindo para currículos
presenciais conectados ou híbridos com muito recursos digitais sofisticados
(laboratórios, plataformas e aplicativos) e professores com competências
pedagógicas e digitais amplas.
A maioria dos cursos são de tempo parcial e atendem
estudantes que trabalham e/ou querem maior flexibilidade nas suas vidas. Segundo
o estudo Mapa do Ensino Superior no Brasil[1],
90% dos jovens que ingressam em uma instituição privada têm renda de até três salários-mínimos,
e 45%, de até 1,5 salário-mínimo. A baixa remuneração dificulta pagar as
mensalidades e se manter no ensino superior, sem algum tipo de apoio (bolsa,
financiamento).
Além dos problemas econômicos, há um flagrante
descompasso entre as expectativas dos alunos, também dos empregadores, e os
currículos oferecidos em muitas Faculdades, muito burocráticos e
desestimulantes. A evasão é alta no Ensino Superior: entre 2017 e 2021, 55,5%
dos estudantes que entraram em uma instituição de ensino superior desistiram do
curso e apenas 26,3% o concluíram no tempo devido. Tudo isso num contexto em
que quase metade dos jovens não chega ao Ensino Médio e só 18% acessa ao Ensino
Superior. As faculdades mais interessantes desenham currículos com metodologias
ativas, projetos e competências. Mas ainda são minoria e é difícil mudar a
cultura das instituições maiores ou escalar os modelos mais avançados.
Os cursos a distância atraem cada vez os jovens, além
dos adultos. Eles têm uma grande relevância social, mas muitos são
excessivamente conteudistas, com um design muito previsível, com resultados
preocupantes. Quase metade (47,8%) dos cursos EAD tiveram um desempenho abaixo
do mínimo exigido pelo MEC no ENADE (tiraram notas 1 e 2), enquanto, no caso
dos presenciais, foram 30,9%[2].
São dados preocupantes, que indicam que uma parte da
oferta na educação a distância e também na presencial está muito distante do
desejado, principalmente na Pedagogia e Licenciaturas. Os problemas são complexos:
começam na Educação Básica, ainda bastante convencional, e se agravam pelo
descompasso com o ritmo das transformações no cotidiano e pela deficiência na
continuidade das políticas públicas.
Instituições sérias procuram que o aluno aprenda com
qualidade, seja no presencial, no semipresencial ou a distância. As
instituições mais focadas em resultados financeiros e em marketing, tem
banalizado os projetos, diminuindo custos, com modelos híbridos pouco
relevantes e desvalorização dos docentes. Não é a modalidade que conta, mas a coerência
institucional. O ritmo das transformações é diferente, mas o importante é a
seriedade com que essa mudança é feita.
Para onde caminhamos
A experiência de estarmos juntos fisicamente é
insuperável, quando bem realizada. Mas a experiência do digital está evoluindo
muito, é muito mais barata e prática. Os encontros são cada vez mais habituais,
diversificados e interessantes. A cultura de combinar encontros síncronos com
atividades assíncronas é muito mais aceita. A experiência de imersão e de
compartilhamento começa a ser mais perceptível. A combinação de inteligência
artificial com a realidade virtual, aumentada e mista é poderosa para a sensação
de proximidade, para o desenvolvimento de projetos em grupos, para a
aprendizagem individual mais completa.
Cada IES tem sua cultura, contexto e história, mas todas
estão buscando como tornar-se mais competitivas e relevantes. Instituições mais
novas costumam nascer com o DNA mais digital, foco em experimentação, projetos
e competências. Há um movimento geral forte de hibridização dos currículos,
tornando-os mais flexíveis, com mais itinerários e micro certificações. Estas
certificações mais curtas mantém os alunos mais engajados, porque valorizam
cada etapa, permitem maior personalização e tempo de integralização do
currículo.
A flexibilidade visa também incentivar a aprendizagem
continuada, ao longo da vida, trazendo o aluno em períodos diferentes para
seguir aprendendo, de acordo com sua necessidade. Cada aluno e professor começa
a ter seu assistente virtual para gerenciar cada etapa do ensino e
aprendizagem. As plataformas mostram os avanços e dificuldades de cada um. Os
currículos fazem mais sentido, quanto maior integração houver entre áreas de
conhecimento, professores, alunos e tecnologias.
Os cursos a distância, para serem relevantes, serão mais
interativos, com tutoria digital, mais aprendizagem entre pares, micro
certificações e tutoria qualificada. No horizonte de médio prazo superaremos as
duas modalidades e só teremos uma: a da educação flexível, ofertada com
diversas combinações de acordo com as necessidades e conveniências dos alunos e
da instituição. Uma parte das IES fará isso com qualidade e outra, não.
Quanto mais avanços tecnológicos e nos projetos
híbridos e digitais, mais importante se torna a ênfase na aprendizagem mais
crítica e humanizadora. Com a riqueza de plataformas e aplicativos poderíamos ter
evoluído muito mais. Se não o fazemos é porque temos deficiências pessoais e
organizacionais nos valores, em trabalhar juntos, em entender-nos, em conviver
de forma mais aberta e efetiva, em manter a coerência entre a visão e as ações.
Há, com frequência, bastante diferença entre o discurso pedagógico, os
documentos e a prática, entre o que se fala e o que se faz, entre as aparências
e a realidade. Educação é o encontro entre pessoas que aprendem juntas. Esse encontro
é hoje mediado por plataformas digitais, mas é a ênfase no humano que justifica
termos instituições educacionais. E nelas, os educadores-guia, inspiradores,
confiáveis, mentores serão cada vez mais relevantes e necessários.
José Moran - Professor, escritor e pesquisador de projetos educacionais inovadores
Autor do blog Educação Transformadora moran.eca.usp.br
Comentários