Entrevista com José Moran: as grandes transformações na educação atual - CER - Centro Sebrae de Referência em Educação Empreendedora

 Não é novidade para ninguém: vivemos em um mundo em que as transformações acontecem a cada minuto, senão a cada segundo. Isso, claro, também reflete na educação brasileira e em todos os atores da comunidade escolar.

Esse foi o tema do evento “As grandes transformações na educação atual“, realizado on-line, em julho deste ano, e conduzido pelo professor, escritor e pesquisador de projetos educacionais inovadores José Moran. A equipe do Portal CER conversou com ele sobre alguns dos temas abordados nos encontros. Confira!


1. JÁ É POSSÍVEL IDENTIFICAR ALGUNS EFEITOS DA PANDEMIA NA EDUCAÇÃO. OUTROS, POR OUTRO LADO, SÓ SERÃO REVELADOS AO LONGO DO TEMPO. HÁ PREVISÕES SOBRE ESSES EFEITOS QUE VOCÊ JÁ CONSEGUE CITAR?

Os efeitos da pandemia ainda estão sendo pesquisados e são parcialmente conhecidos. Sabemos do grande impacto em todas as dimensões da vida de cada pessoa, nas organizações, nas formas de ensinar e de aprender, na saúde física e mental, na economia, na política. Quem já era digital ou se adaptou rapidamente conseguiu avançar no mercado ou diminuir os prejuízos. A pandemia mostrou e ampliou a brutal desigualdade estrutural entre pobres e ricos, entre os que têm acesso e domínio do mundo digital e os que não o têm.

Vivemos transformações profundas no modo de viver, trabalhar, divertir e aprender. O mundo é fi-digital (físico-digital): tudo está mais híbrido, misturado, combinado em todos os campos. O avanço da Inteligência Artificial aponta para uma maior personalização do aprendizado, a fim de que cada pessoa possa aprender e empreender ao longo da vida individualmente e em diversos grupos e comunidades, em contato com a realidade, desenvolvendo projetos inspiradores, principalmente que resolvam problemas da comunidade.

Mas as crises trazem consequências muito diferentes em todos os campos, porque as pessoas e as organizações reagem a elas de formas bastante diferentes. Umas aprendem rapidamente, experimentam, enxergam novas oportunidades (modificam sua visão e as estratégias com mais celeridade e empreendem); outras fazem alguns ajustes, adaptam-se para não ficar para trás (realizam pequenas adaptações); um terceiro grupo de pessoas e organizações permanecem na defensiva, só enxergando perdas e problemas (e só mudam tardiamente e a contragosto). As escolas deverão se transformar em hubs de educação de pessoas no decorrer da vida e da educação social de todos. O aluno será aluno para sempre (mesmo depois do término da certificação oficial). As escolas estarão mais abertas para a participação de outros profissionais externos como mentores, tutores em tempos determinados, com interação presencial e online. Escolas e universidades estão experimentando um processo de redesenho profundo de todo o ecossistema educacional. Serão mais abertas ao mundo, flexíveis, interagindo criativamente com públicos diferentes, de formas diferentes.

Toda a sociedade está reaprendendo a aprender e espera que as instituições educacionais se transformem em polos de educação social amplos (com programas mais formais e informais, de curta e longa duração, presenciais e digitais). A educação é o ativo mais importante da sociedade e o que mais oferece oportunidades de empreender. Os cursos nos formatos digitais avançarão dentro e fora das instituições reconhecidas, com modelos de oferta muito ricos e diversificados. A certificação por competências será cada vez mais utilizada com o apoio de plataformas inteligentes, adaptativas e imersivas.


2. A PANDEMIA ACELEROU A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL, INCLUINDO RECURSOS QUE NÃO CHEGARIAM TÃO RAPIDAMENTE. COMO ENXERGA ESSE IMPACTO, PENSANDO NA QUALIDADE DO PROCESSO DE  ENSINO-APRENDIZAGEM?

O cenário educacional atual é mais complexo do que parecia há pouco tempo. Imaginei que hoje, depois da pandemia, estaríamos mais felizes e preparados ao voltar às salas de aula, por termos superado um período tão longo e difícil no on-line compulsório. Não é fácil manter os estudantes atentos e interessados neste novo cenário fi-digital (físico-digital). Muitos gestores e docentes estão estressados, tentando atender às demandas de ‘recuperar perdas’ no currículo, gerenciar grupos de alunos com nível diferente de conhecimento e dificuldade, enquanto veem uma parte dos colegas desatualizados e desmotivados.

Os níveis de ansiedade e angústia são elevados, na maior parte das pessoas, pelo impacto da pandemia na nossa vida, agravado pela deterioração da economia, pelas incertezas no cenário político e pelo aumento da desigualdade social.

Para inovar e empreender, precisamos de ambientes de confiança, de respeito; ter gestores e docentes valorizados e escolas abertas para a comunidade e para o mundo. Um dos grandes problemas da cultura no Brasil é a difícil relação de confiança social. Temos uma cultura de afabilidade, mas não de confiança. Sem ambientes de confiança, as inovações são muito mais lentas e complicadas.

Diante dessa conjuntura, muitas instituições falam em inovação, mas estão banalizando o ensino com modelos curriculares rasos, com conteúdos pouco criativos, diminuindo a importância dos professores. Falam em inovação, modelos híbridos, mas investem pouco na qualidade, e sim na massificação. Felizmente temos muitas instituições responsáveis que buscam inovar valorizando a docência, a participação criativa dos alunos, a participação das famílias, a experimentação com apoio das plataformas digitais mais avançadas.

Estamos em um período de transição para a experimentação de novos modelos de ensinar e de aprender, mais flexíveis, mais personalizados e com muita sinergia com as organizações sociais e o apoio do melhor dos encontros presenciais com a riqueza de possibilidades que também o digital oferece, assíncrona e sincronamente.


3. AINDA SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL, O ENSINO HÍBRIDO FOI UMA DAS FRENTES QUE OBTIVERAM RELEVÂNCIA, E ISSO PARECE SER IRREVERSÍVEL. VOCÊ VÊ GANHOS E/OU PERDAS NESSE CENÁRIO?

Avançou na sociedade a percepção de que podemos aprender de múltiplas formas, em diferentes espaços físicos e digitais, síncronos e assíncronos; sozinhos, em grupos, em redes e com mentoria; no curto e longo prazos e ao longo da vida.

Os modelos híbridos não se reduzem a misturar o presencial e o digital, mas a realizar todos os modos de integração possíveis: entre pessoas, áreas de conhecimento, metodologias, formas de avaliação nos diversos espaços, tempos e plataformas, mas sempre com afeto, acolhimento real, efetivo e visível de todos e para todos.

Precisamos redesenhar as maneiras de ensinar e de aprender com mais atenção às necessidades de cada estudante, com intensa participação em projetos integradores relevantes, com currículos mais flexíveis, escolas abertas para a comunidade, com ampla utilização de recursos digitais. Mas sem perder o essencial: conhecer os estudantes, acolhê-los, escutá-los ativamente, incentivá-los a participar continuamente, a que se sintam protagonistas, valorizados. Numa organização complexa como a escola, há normas, limites e prazos, mas eles não podem ser inflexíveis, rígidos, uniformes ou punitivos.

Os modelos ativos híbridos fazem mais sentido quando organizados com políticas públicas sólidas, coerentes e com visão de longo prazo (o que não é trivial). Eles fazem mais sentido quando estão planejados institucionalmente e de jeito sistêmico, como componentes importantes de reorganização do currículo por competências e projetos, de forma flexível, com diversas combinações de acordo com as necessidades do estudante (personalização), intenso trabalho ativo em equipes e tutoria/mentoria (projeto de vida) com suporte de multiplataformas digitais integradas.

Todos os cursos começam a ter modelos híbridos em diferentes graus, que serão testados nestes próximos anos para encontrar o equilíbrio no melhor modelo de aprender em cada área de conhecimento e nível de ensino, além de ampliar a oferta de oportunidades de  aprender e de ensinar para novos participantes externos. Há um avanço claro no mercado de concentração no Ensino Superior e, agora, também na Educação Básica. As escolas e as universidades com visão empreendedora ampliarão sua abrangência, mercado e relevância se aproveitarem as inúmeras oportunidades de reaprender que a sociedade exige e precisa.


4. A FORMA COMO OS ESTUDANTES CONSTROEM O CONHECIMENTO FOI DURAMENTE AFETADA PELA PANDEMIA. QUAIS PONTOS DE TRANSFORMAÇÃO – EM ESPAÇOS FÍSICOS OU NÃO –  VOCÊ CONSIDERA CRUCIAIS PARA ESTE NOVO MOMENTO?

As escolas são ecossistemas complexos e estão se transformando no currículo, na metodologia, no espaço, na tecnologia, na avaliação e na relação com a sociedade. A transformação mais visível é a digital (embora de forma desigual). O digital é um ambiente essencial para inovar, empreender,  integrar todas as áreas, pessoas e serviços e poder oferecer experiências ricas e diferenciadas de aprendizagem, pesquisa e parcerias. Plataformas digitais e aplicativos com Inteligência Artificial fornecem dados personalizados e atualizados de todos e para todos (gestores, docentes, estudantes e famílias); integram todos os setores, atividades, participantes; tudo fica visível, facilitando a tomada de decisões pedagógicas, administrativas e financeiras.

Podemos redesenhar todas as possibilidades do aprender incorporando as trilhas individuais, para que cada aluno possa realmente desenvolver cada vez com mais autonomia no presencial e no digital as diversas formas de aprendizagem em grupo. A escola criativa e empreendedora trabalha com projetos e outras dinâmicas, centrados na aprendizagem ativa, que estimula que os alunos resolvam problemas relacionados aos seus interesses e realidade.

E escolas, mesmo sem tecnologias avançadas, podem ser criativas e interessantes e flexíveis quando gestores e docentes são competentes, abertos, criativos e encantam. Sem encantamento, não há aprendizagem profunda. As tecnologias ajudam no encantamento, na escuta, no compartilhamento de práticas e de decisões, na participação da comunidade, se essa for a filosofia da escola. Da mesma maneira, essas podem contribuir para reforçar projetos mais controladores e autoritários.

A tendência é de que as escolas sejam muito mais criativas, interessantes, abertas e participativas. Algumas já são, outras estão em graus diferentes de transformação. Quem demorar demais perderá relevância, alunos e poderá ter que fechar ou ser adquirida por grupos mais empreendedores.


5. ACREDITA QUE A EDUCAÇÃO EMPREENDEDORA PODE SER PROVIDENCIAL NO CENÁRIO PÓS-PANDÊMICO? COMO?

A maioria das pessoas pensa que empreender é para poucos, para aqueles que já nascem com esse dom. O que a neuroeducação e as ciências da aprendizagem confirmam é que todos podemos empreender, mudar nossa visão de mundo, aprender a experimentar mais, assumir novos desafios, cada um de acordo com sua história, personalidade e circunstâncias. Uma questão crucial é como mudar a mentalidade de docentes e gestores educados a seguir trilhas conhecidas e avessos ao risco para que sejam mais empreendedores.

A mudança pode ser interna, a partir da insatisfação e do fracasso (como aconteceu comigo). Alguns fracassos me empurraram para ousar mais, para sair da mesmice, buscar novos caminhos tanto na docência como na vida. A mudança de mentalidade se aprende, se exercita e desenvolve no ritmo possível a cada um. Para isso temos muitas oportunidades: quando pessoas experientes em campos diferentes nos mostram experiências bem-sucedidas, essas  nos fazem experimentar


8. COMO ENTENDE QUE A ESCOLA PODE APOIAR A IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO EMPREENDEDORA E ATÉ A “EDUCAÇÃO DO FUTURO”?

A Educação Empreendedora parte dos mantenedores, dos gestores como atitude, como política e como um conjunto orgânico de ações, que incentivam docentes, estudantes e famílias com a explicitação da visão e políticas claras de apoio à experimentação e à ligação entre a escola e as organizações sociais.

É uma escola aberta para o mundo, com parcerias com empresas, trabalhando com resolução de projetos reais. Bons caminhos passam, especificamente, por trabalhar o projeto de vida do estudante, seu desenvolvimento pessoal e profissional, com ênfase na criatividade e no empreendedorismo ao longo do currículo, com módulos práticos/reflexivos também específicos.


9. QUANTO AO DESENVOLVIMENTO DA MENTALIDADE EMPREENDEDORA, QUAL É O PAPEL DO PROFESSOR E DO GESTOR ESCOLAR NO DIA A DIA DE ENSINO?

gestor empreendedor é uma inspiração para todos: apoia as iniciativas, favorece ambientes de confiança e de experimentação em todos os espaços, tempos e de todas as formas.

É muito visível a diferença entre o gestor burocrático (que só administra o que ocorre) e o que inspira políticas e ambientes de criação e de empreendedorismo. O gestor precisa buscar os docentes mais alinhados com essa visão para criar um núcleo forte de ações empreendedoras.

É difícil, numa instituição, que todos estejam sintonizados nessa visão empreendedora. Por isso é fundamental começar reunindo e apoiando os que já estão nesse caminho e construir com eles um núcleo de inovação que sinalize para os demais o direcionamento da escola, mobilizando os reticentes e estimulando-os a mudar de atitude diante do claro direcionamento institucional. Também ajuda muito se houver uma política de mentoria para os docentes que têm mais dificuldades e resistência, apoiando-os nos caminhos da mudança, indicando a importância dessa mudança mental para a própria empregabilidade futura.


10. E A FAMÍLIA, QUE PAPEL TEM NO APOIO À MENTALIDADE EMPREENDEDORA?

A família é o primeiro grande espaço de educação de valores, de exemplo e incentivo para a experimentação dos filhos. Só que muitos pais estão condicionados pelo medo de errar, são avessos ao risco ou querem dar tudo pronto aos filhos.

Um nicho de mercado fundamental na nossa sociedade é educar os pais a empreender, para que estimulem a experimentação dos filhos, que os deixem assumir mais riscos, que não deem tudo de bandeja, que não resolvam, eles mesmos, os problemas das crianças. As escolas podem ser valiosas na ajuda para mudar a mentalidade ‘protetora’ de muitos pais.

Há, frequentemente, uma flagrante contradição entre algumas escolas mais inovadoras e a mentalidade de pais mais conservadores, que insistem que a escola seja mais conteudista e dê menos ênfase a projetos criativos. A educação dos pais e dos futuros pais para uma mentalidade empreendedora é uma grande oportunidade para escolas e profissionais que buscam novas oportunidades no mercado educacional. Nunca houve tantos desafios e oportunidades na educação como hoje, em todas as dimensões pessoais, grupais, institucionais, formais e informais – porque tudo está sendo redesenhado, ressignificado e em experimentação.


https://cer.sebrae.com.br/blog/jose-moran-transformacoes-na-educacao-atual/


Gostou desse conteúdo e quer ler mais entrevistas com relevantes nomes do mundo da educação? Acompanhe o Portal CER SEBRAE e não perca nada!

Comentários

Muitos são os motivos que nos levam a empreender na educação distância: o fracasso, a não aceitação nas instituições formais de ensino, mas também a vontade de encantar! Eu concordo plenamente que sem encantamento, afeto, confiança e aceitação não há aprendizagem profunda. Eu procuro este encantamento quando aprendo e quando ensino 😊
José Moran disse…
Obrigado, Leila. Parabéns pela sua postura profissional. Abraço. Moran.

Postagens mais visitadas deste blog

A Internet na nossa vida

O papel das metodologias na transformação da Escola

Educação híbrida: um conceito chave para a educação, hoje José Moran