Redesenhando os caminhos da educação
José Moran - Educador e pesquisador de inovações na educação
Depois de dois anos tão excepcionais vivendo realidades tão
inesperadas em todos os campos, enfrentamos agora cenários bem desafiadores e
desiguais na educação. O que manter e o que modificar a partir de agora? A
experiência do digital forçado deixou o país mais dividido ainda: Uma parte conseguiu
se sair relativamente bem, enquanto outra ficou bem para trás seja pelas
condições econômicas ou por não se adaptar ao modelo online. Avançou na
sociedade a percepção de que podemos aprender de múltiplas formas, em
diferentes espaços físicos e digitais, síncronos e assíncronos; sozinhos, em
grupos, redes e com mentoria; no curto e longo prazo e ao longo da vida.
A educação escolar precisa
ser redesenhada em um mundo muito mais híbrido, conectado e, no Brasil, tão
desigual. A
separação entre espaços físicos presenciais e digitais diminuiu, se
reconfigurou - como em outras áreas da nossa vida - e há um crescente consenso
de que construiremos, a partir de agora, muitas propostas diferentes de ensinar
e de aprender híbridas, mais flexíveis, personalizadas e participativas, de
acordo com a situação, necessidades e possibilidades de cada aprendiz. As
arquiteturas pedagógicas serão mais abertas, personalizadas, ativas e colaborativas,
com diferentes combinações, arranjos, adaptações num país com realidades muito
desiguais.
Os modelos
curriculares uniformes, de sequência linear não fazem sentido numa sociedade
com amplo acesso às informações, às redes sociais e comunidades e em que cada
pessoa precisa resolver problemas complexos de forma rápida e eficiente. Hoje
podemos redesenhar as melhores combinações possíveis na integração de espaços,
tempos, metodologias, para oferecer as melhores experiências de aprendizagem à
cada estudante de acordo com suas necessidades e possibilidades.
Educação em espaços
flexíveis significa que podemos redesenhar todas as possibilidades de aprender
incorporando as trilhas individuais que cada aluno possa realmente desenvolver
cada vez com mais autonomia no presencial e no digital e, também, as diversas
formas de aprendizagem em grupo, entre pares através de projetos, jogos de
forma síncrona e assíncrona com apoio de plataformas e aplicativos digitais,
mediação docente e ações de tutoria e mentoria.
Para inovar precisamos
de ambientes de confiança, de respeito; ter gestores e docentes valorizados e escolas
abertas para a comunidade e para o mundo. Um dos grandes problemas da cultura
no Brasil é a difícil relação de confiança social. Temos uma cultura da
afabilidade, mas não de confiança. Sem ambientes de confiança, as inovações ou
não acontecem ou não se sustentam.
Sabemos que é complexo falar de transformações na educação
em um país com uma desigualdade estrutural em todas as dimensões e escolas com
realidades tão diferentes. Temos consciência de que as transformações também
dependem de políticas públicas com diretrizes coerentes, consensuadas,
continuadas e investimentos maiores e melhores na gestão, docência e
infraestrutura física e digital. Os desafios, apesar dos avanços, ainda são gigantescos.
O desafio
de tornar as escolas e universidades mais atraentes
Todas as escolas e universidades podem e precisam tornar-se
interessantes, criativas,
empreendedoras, humanas. Podemos encantar, abrir a escola para o mundo, escutar
mais ativamente os estudantes, utilizar todas as estratégias para que eles
aprendam.
Há questões
estruturais que dependem de políticas públicas continuadas, de formação e
valorização de docentes e gestores, boa infraestrutura física e digital, entre
tantos fatores. Mas vemos escolas interessantes públicas e privadas ao lado de
outras pouco atraentes. O que elas têm de diferente?
Escolas
interessantes fomentam o clima de transparência, de acolhimento, de diálogo, de
compartilhamento de práticas e de envolvimento na tomada de decisões
estratégicas de todos os setores da comunidade. O desenho curricular
também pode ser mais flexível. Uma parte do percurso é feita
pelo estudante, dentro do seu ritmo e circunstâncias e através
de escolhas diferentes. Outra parte é realizada em
grupo, de forma mais colaborativa, experiencial e reflexiva com a
supervisão e mediação dos docentes nos espaços presenciais e
digitais, de forma síncrona ou assíncrona. O percurso se amplia com
atividades de tutoria e mentoria para o desenvolvimento dos
projetos pessoais e de vida de cada estudante. As
escolas mais inovadoras são comunidades vivas, com gestores e
docentes criativos, humanos e empreendedores,
que estão redesenhando os espaços, currículos, metodologias,
tecnologias e avaliação de uma forma flexível, contínua e
sistêmica.
Escolas interessantes atraem os estudantes, eles gostam dos
ambientes, dos docentes, dos projetos. Sabem que vão encontrar ambientes que
estimulam a investigação, o diálogo, a solução de problemas, o jogo, a aprendizagem
com diversão e ao mesmo tempo com desafios reais.
Escolas interessantes começam com gestores acolhedores,
que lideram pelo exemplo, que apoiam docentes, estudantes e famílias. As
escolas estão limpas, os ambientes são atraentes e, principalmente, as pessoas são
competentes e humanas. Os professores estão motivados, se ajudam,
desenham estratégias diversificadas para que os estudantes se engajem,
participem, criem, compartilhem. Escolas são vivas e
atraentes quando há comunicação, respeito, incentivo. Isso é o básico. Não
estamos falando que todas as escolas precisam ter as melhores tecnologias (é
ótimo, se for possível), mas o principal é ter um grupo de profissionais que
fazem de tudo para encantar crianças e jovens. Sem encantamento não há aprendizagem
profunda. Quando os estudantes se encontram em ambientes autoritários,
controladores, em que eles só executam tarefas, a aprendizagem é mais
superficial e pouco estimulante. Tornar uma escola interessante não
depende principalmente de ter uma infraestrutura sofisticada, mas de ter
profissionais competentes, abertos, criativos e que se ajudam. Pessoas
interessantes e humanas atraem, conquistam, entusiasmam. Pessoas
interessantes gostam de aprender, quando ensinam; são flexíveis para adaptar-se
a cada situação, pessoa e turma.
Temos escolas com propostas pedagógicas diferentes,
umas com mais ênfase em projetos,
a maioria em conteúdo, mas todas deveriam saber motivar, atrair, engajar
os estudantes, utilizando toda a expertise acumulada em gestão, docência,
avaliação. Hoje todos nós, os educadores, somos desafiados
a incorporar metodologias ativas, competências digitais, trabalhar com a
personalização e a aprendizagem em grupos de forma mais integrada, flexível,
compartilhada. Precisamos equilibrar informação com experimentação, teoria
e prática, materiais analógicos e digitais, espaços físicos e
virtuais. Mas o essencial continua igual: educação é o encontro entre
pessoas que se ajudam a evoluir em todas as dimensões vitais: ampliar o conhecimento,
as competências socioemocionais e o desenvolvimento de valores humanizadores.
A educação precisa ser empreendedora, assim como a vida, que nos
desafia em todos os campos, a todo momento, em todas as áreas com problemas
concretos, complexos e multidisciplinares. Aprender empreendendo é a única
saída para viver uma vida com significado e evolução em todos os momentos e em
todas as dimensões.
A transição dos projetos
convencionais para os inovadores
Como fazer a transição dos projetos
educacionais convencionais para os inovadores na prática?
Não há uma resposta
única, cada escola tem sua cultura e características. Mas todos os currículos
precisam ser atualizados, redesenhados para conseguir ser relevantes e diminuir
a distância entre escolas inovadoras e escolas que estão ficando defasadas. Há
modelos de mudança mais suaves e outros mais radicais. Há mudanças que são
viáveis no curto prazo e outras que precisam ser cuidadosamente preparadas para
serem bem-sucedidas, evitando possíveis retrocessos e reviravoltas. A inovação
pode começar em pequena escala, em uma
área que não comprometa a instituição como um todo e que permita uma avalição
cuidadosa, antes de ampliá-la para todos.
É importante conhecer as diferentes soluções e modelos,
analisá-los e chegar a um consenso dos que melhor se adaptam às necessidades de
cada instituição. Uma condição importante é o envolvimento de todos neste
processo. Começa por um compartilhamento de ideias, experiências, soluções
para, após debates amplos, chegar aos consensos possíveis.
- aproximar mais os docentes: planejar juntos, alguns
projetos importantes juntos, uma parte da avaliação juntos.
- aproximar docentes e alunos: conhecê-los, negociar
propostas, propostas, procedimentos, projetos, avaliação.
- aproximar gestores, docentes e famílias: projeto
pedagógico, apoio nas atividades individuais e grupais dos estudantes. Abrir a
escola para que os estudantes e pais participem das decisões importantes;
abrir a escola para a comunidade; convidar pais e pessoas da comunidade
a compartilhar sua experiência profissional com palestras,
oficinas ou a “adotar” alguns estudantes que precisem de maior
apoio pedagógico ou socioemocional.
-aproximar gestores, docentes, estudantes, famílias e
organizações sociais para o desenho das transformações mais profundas.
Outra ação importante é conhecer e apresentar exemplos
concretos de escolas que estão mais avançadas nas metodologias ativas e que
fizeram um processo de reengenharia bem-sucedido. É necessário também
acompanhar de perto os passos de
instituições que atuam no mesmo segmento, para não ficar atrás. Há um
impacto forte de novos modelos nas demais escolas, principalmente no ensino
privado
O passo seguinte é engajar muitos professores e gestores na
promoção de mudanças significativas nas suas práticas pedagógicas, no
relacionamento com os alunos, nas metodologias utilizadas, na avaliação, no
diálogo constante com as tecnologias digitais com formações continuadas,
compartilhamento de práticas, experiências num clima de intensa colaboração e
confiança. Sem clima de confiança e apoio institucional, as mudanças serão só
pontuais e não estruturais.
As decisões de transformação quanto mais assumidas pela
instituição como um todo, melhor. O apoio de mantenedores, gestores e
coordenadores à inovação, à busca de uma maior experimentação mobiliza o corpo
docente para ousar mais, propor alternativas, compartilhar práticas.
Convém fazer um levantamento de quais docentes e grupos já
têm familiaridade com trabalho por projetos, com ensino híbrido, com aula
invertida, aprendizagem por times e outras tantas técnicas de engajamento ativo
dos estudantes. Tornar visível esse mapa é útil para que a instituição se
conheça melhor e possa discutir com mais propriedade as etapas seguintes. Os
próprios docentes podem capacitar seus colegas. É muito mais rápido, barato e
de feitos rápidos. A aprendizagem por pares é eficaz também entre os docentes.
Essas formações podem ser ampliadas com oficinas pontuais de grupos externos
para preencher lacunas e apontar novos caminhos.
Uma política inteligente é a de comunicar claramente a todos
os envolvidos – alunos, docentes, pais – todo o processo de mudança, o apoio
institucional às metodologias ativas, os próximos passos em cada nível de
ensino.
Outro caminho é a formação docente
em metodologias ativas, com apoio de tecnologias digitais. Realizar formações ativas, imersivas com metodologias ágeis para acelerar as
mudanças mentais, na forma de pensar, ensinar e de agir. O propósito é acelerar a transformação do mindset
das pessoas; que passem da mentalidade focada na certeza, no medo de falhar
para a de arriscar, de estimular a experimentação, o erro, a criatividade, o
desafio.
É importante também
a formação ativa dos estudantes para que saiam da atitude passiva de esperar
que o professor decida tudo por eles para a de perceber que quanto mais se
envolvam, pesquisem e resolvam problemas mais eles evoluirão. A formação precisa chegar também às famílias
para que compreendam, vivenciem e apoiem as mudanças curriculares,
metodológicas, avaliativas e participem ativamente de todo o processo.
Para onde
vamos?
Cenários
para a Educação em 2040[1]
Acabo de ter acesso ao relatório "De volta ao futuro da
Educação – quatro cenários da OCDE", que aponta quatro cenários possíveis
para a educação em 2040: Prolongamento da escola ("Schooling
extended"), Educação subcontratada ("Education Outsourced"),
Escolas como espaços de aprendizagem ("Learning hubs") e Aprender à
medida que se avança ("Learn as you go").
·
A escola estendida ("Schooling
extended")
Os investigadores que imaginaram um cenário de
"prolongamento da escola" acreditam que as escolas irão continuar a
funcionar no modelo de sala de aula com um adulto presente, mas com horários
mais flexíveis, métodos de ensino variados e fronteiras entre disciplinas
esbatidas.
"As escolas passam a ter um corpo docente reduzido, mas
distinto e bem treinado, que continua encarregado de conceber conteúdos e
atividades de aprendizagem, que podem ser depois implementados e monitorados
por robôs educativos, juntamente com outros funcionários", lê-se no
relatório.
Já não será "preciso parar e testar", predizem os
investigadores, acrescentando que os alunos terão mais diversidade nas escolhas
de conteúdos e trilhas de aprendizagem, mas os tradicionais certificados das habilitações
vão continuar a ser o principal passaporte para o sucesso económico e social.
·
Escolas como espaços de aprendizagem
Uma outra equipe imaginou um outro cenário em que as
"escolas são espaços de aprendizagem", mantendo a maioria das funções
tal como as conhecemos atualmente, mas onde a diversidade e a experimentação se
tornam predominantes.
Desaparecerão hábitos como dar notas aos alunos e aprender
passa a ser uma atividade diária orientada por profissionais da educação,
dentro e fora dos limites das salas de aula e das escolas.
As escolas estão abertas à participação de profissionais não
docentes: atores locais ou parentes são bem-vindos à escola, assim como
parcerias com instituições, como museus ou bibliotecas.
No entanto, "os professores atuam como engenheiros de
atividades de aprendizagem em constante evolução, e a confiança no
profissionalismo dos professores é elevada", refere o relatório,
sublinhando que "os professores com forte conhecimento pedagógico e
ligações próximas a múltiplas redes são cruciais".
Um outro cenário - intitulado "Educação
subcontratada" - prevê o gradual desaparecimento dos sistemas escolares
tal como se conhecem atualmente: "Desmoronam-se à medida que a sociedade
se torna mais diretamente empenhada na educação dos seus cidadãos".
A aprendizagem dá-se então através de formas mais diversificadas,
podendo haver uma mistura de ensino doméstico, tutoria, aprendizagem 'online',
mas também o ensino e aprendizagem baseados na comunidade. Haverá um maior
envolvimento dos pais, que podem recorrer a serviços de cuidados públicos ou
participar em redes comunitárias auto-organizadas.
Em alguns países, a oferta pública passa a ser uma
"solução corretiva ou complementar", proporcionando aos pais um
serviço gratuito ou de baixo custo de creches e oferecendo às crianças acesso a
oportunidades e atividades de aprendizagem para estruturarem o seu dia.
Também este cenário prevê que os alunos tenham uma maior
flexibilidade para avançarem no seu ritmo, podendo combinar a aprendizagem
formal com outras atividades.
Apesar das mudanças, "os aspectos culturais da
organização de ensino tradicional podem muito bem sobreviver neste cenário,
como o professor e o papel dos alunos", concluem os investigadores.
·
"O profissional de ensino
desaparece"
Por outro lado, no quarto cenário – "Aprender à medida
que se avança" ("Learn as you go") - "o profissional de
ensino desaparece".
Este cenário baseia-se no rápido avanço da inteligência
artificial (IA), da realidade virtual e da internet, que os investigadores
acreditam que irá mudar completamente a nossa percepção de educação e
aprendizagem, permitindo que a educação possa acontecer em todos os lugares e a
qualquer hora.
As oportunidades de aprendizagem são gratuitas e levam ao
"declínio das estruturas curriculares e ao desmantelamento do sistema
escolar".
Este cenário desenha um mundo onde todas as fontes de
aprendizagem são "legítimas", onde há oportunidades de aprender em
todo o lado e os indivíduos são consumidores profissionais da sua própria
aprendizagem.
Apesar de desaparecerem os "profissionais de
ensino", há aulas, palestras e várias formas de tutoria que podem ser
assistidas 'offline' como 'on-line', sendo algumas articuladas por humanos,
outras criadas pela máquina.
Hábitos enraizados como dar notas aos alunos desaparece e
aprender passa a ser uma atividade de todo o dia orientada por profissionais da
educação, mas nem sempre dentro dos limites das salas de aula e das escolas.
As escolas estão abertas à participação de profissionais não
docentes no ensino: atores locais ou parentes são bem-vindos à escola, assim como
parcerias com instituições, como museus ou bibliotecas.
No entanto, "os professores atuam como engenheiros de
atividades de aprendizagem em constante evolução, e a confiança no
profissionalismo dos professores é elevada", refere o relatório,
sublinhando que "os professores com forte conhecimento pedagógico e
ligações próximas a múltiplas redes são cruciais".
São cenários possíveis, na visão de especialistas do
primeiro mundo; provavelmente coexistirão com ênfases diferentes em cada país.
Sabemos que nossa realidade é muito complexa e desigual, mas o relatório
confirma que precisamos redesenhar o processo de ensinar e de aprender no
curto, médio e no longo prazo.
[1]
Relatório da OCDE 2022, disponível em www.oecd.org/education/trends-shaping-education-22187049.htm
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