Autonomia e colaboração em um mundo digital
A aprendizagem acontece no
movimento fluido, constante e intenso entre a comunicação grupal e a pessoal,
entre a colaboração com pessoas motivadas e o diálogo de cada pessoa consigo
mesma. A comunicação pessoal e a grupal são componentes interligados e
inseparáveis no processo de aprender continuamente, mais profundamente num
mundo cada vez mais complexo e imprevisível.
A sociedade é cada vez mais dinâmica
e as interconexões também. Tudo está interligado, aprendemos continuamente uns
com os outros, juntos fisicamente ou conectados, com diferentes grupos com os
que nos relacionamos. A aprendizagem contínua, ao longo da vida e em múltiplos
grupos e redes – físicas e digitais – é uma das características marcantes da
atualidade. As múltiplas formas de
colaboração, hoje, entre pessoas próximas e conectadas, com dispositivos
móveis, possibilita a aceleração da aprendizagem individual, grupal e social,
pelas múltiplas articulações, interligações, desdobramentos, em todos os
campos, atividades e situações em que nos envolvemos, discutimos, atuamos e
compartilhamos. O compartilhamento gera aprendizagens e produtos muito mais
rápida, barata e inovadora do que até agora.
É na síntese dinâmica da
aprendizagem personalizada e colaborativa que desenvolvemos todo o nosso
potencial como pessoas e como grupos sociais, ao enriquecer-nos mutuamente com
as múltiplas interfaces do diálogo dentro de cada um, alimentando e alimentados
pelos diálogos com os diversos grupos nos quais participamos, com a intensa
troca de ideias, sentimentos e competências em múltiplos desafios que a vida
nos oferece.
Aprendendo pela
comunicação pessoal
A comunicação pessoal - o diálogo
com todas as instâncias que me compõem e definem - é fundamental para poder
aprender e evoluir em todos os campos. Ela se expressa na motivação. Se eu não
estou motivado, não aprendo, mesmo que haja imensos estímulos ao meu lado. Se
estou motivado, consigo avançar em alguns momentos sozinho e, em outros, com as
diversas pessoas e grupos com os quais me relaciono presencial e virtualmente.
A comunicação aberta e o diálogo
intrapessoais nos ajudam a aprender a tornar mais visíveis nossos projetos de
vida, sonhos, perspectivas, escolhas, caminhos, desvios no meio de tantas
incertezas. A comunicação rica conosco, num diálogo constante com o mosaico de
tudo o que conseguimos sobre o nosso percurso passado, vai tornando visível como
construímos um sentido para nossas diferentes histórias; como elaboramos nossa grande
narrativa - que explicita as tensões entre os sonhos e as realizações- os
roteiros que nos definem como pessoas diferentes,
alimentados por sonhos, mágoas, sucessos e fracassos em todos os campos pelos
quais transitamos.
A comunicação pessoal mais
profunda amplia os horizontes do conhecimento, da percepção, a capacidade de
avaliação do que nos ajuda e complica, do que faz sentido e do que precisamos
deixar de lado, planejando as mudanças necessárias em cada momento. O diálogo
pessoal constante e atento mantém os canais abertos para a intuição, para uma
percepção mais ampla e acurada, para mapear melhor o que pode ajudar-nos e
enriquecer-nos como pessoas, para iluminar sentidos obscuros, rever crenças
inadequadas, superadas, simplistas e poder descartá-las. Aprender a relacionar
melhor, a aprofundar as informações relevantes, a tecer costuras mais
complexas, navegar entre as muitas ondas que atravessamos.
A comunicação dentro de cada um
de nós precisa da combinação de saber navegar, surfar entre os múltiplos grupos
que tem a ver com nossos desejos, expectativas, valores e também saber focar,
parar, concentrar-nos, aprofundar, meditar, fazer sínteses provisórias. Num
mundo tão agitado, de múltiplas linguagens, telas e efervescência, aprender a refletir e focar é decisivo para
ter maior riqueza interior, profundidade de visão e comunicação criadora.
Aprendendo pela
colaboração
Através do diálogo íntimo e
pessoal antecipamos expectativas, comparamos conhecimentos prévios, planejamos o
que nos interessa, a colaboração com as pessoas relevantes, escolhemos alguns
caminhos iniciais e projetos que parecem mais viáveis e promissores para
aprender com outras pessoas - entre tantos possíveis. A partir desse
planejamento pessoal, nas diversas formas de colaboração acontecem múltiplas
trocas, intercâmbios e situações inesperadas, complexas, que exigem rapidez,
flexibilidade de adaptação entre a o previsto e o acontecido, que ampliam a profundidade
e riqueza das aprendizagens.
A interação com pessoas que
querem compartilhar o que sabem com os demais amplia as possibilidades de
encontrar soluções inovadoras, de viabilizar projetos mais rapidamente. Os
movimentos de crowdsourcing - modelos abertos de produção e resolução de
problemas online - são a expressão mais visível da riqueza de projetos que se
tornam viáveis, concretos, pela colaboração. O crowdsourcing bem planejado e executado agiliza a geração de ideias
novas, reduz o tempo de investigação, com custos muito inferiores aos
convencionais, porque combina diferentes expertises e competências através do
compartilhamento em rede.
Muitas pessoas partilham conhecimentos e
recursos que lhes permitem criar uma vasta gama de bens e serviços que qualquer
um pode usar e modificar. Os movimentos de aprendizagem com recursos abertos,
de utilização de ambientes digitais compartilhados estão comprovando com
múltiplas iniciativas concretas - como a Wikipedia, Cursos Massivos Online
(Moocs) - que quando mais colaboramos mais aprendemos e mais soluções criamos
para a sociedade. Aplicativos como o Waze
mostram a importância do compartilhamento das informações online para a
atualização do trânsito, o que reorienta as escolhas dos roteiros de viagem individuais
e também os da cidade como um todo, modificados dinamicamente pelo
compartilhamento.
A aprendizagem acontece num
ambiente social cada vez mais complexo, dinâmico e imprevisível. A colaboração nos
ajuda a desenvolver nossas competências, mas também pode provocar-nos muitas
tensões, desencontros, ruídos e decepções. A colaboração na aprendizagem se
realiza em um espaço fluido de acolhimento e de rejeição, que nos induz a
repensar as estratégias traçadas previamente, dada a diversidade, riqueza e
complexidade de conviver em uma sociedade multicultural em rápida transformação.
A colaboração provoca uma
contínua readequação das expectativas e intencionalidades, a partir das trocas,
contribuições de cada um, que nos servem de espelho para enxergar-nos e, ao
mesmo tempo, nos desafiam a ampliar nossa visão, ideias, sentimentos e
valores. Por isso é fundamental
conseguir realizar sínteses pessoais momentâneas, para não perder-nos na agitação
de uma interação superficial, arrastados por modas e aparências ocas, por
consumismos dependentes ou por
entretenimentos vazios.
A rapidez com que interagimos nos
ajuda e nos complica. Nos ajuda a situar-nos, a atualizar-nos, a circular
digitalmente, a visibilizar-nos; mas também pode nos manter em ondas
superficiais, de um narcisismo doentio. Muitas das colaborações nas redes
sociais hoje buscam manter vínculos com grupos que reforçam uma visão comum e
limitada, que alimentam nossos preconceitos, que dão vazão a maniqueísmos simplistas.
Há muita colaboração com quem me
confirma com “curtidas” e apoios e muito reforço mútuo para desacreditar –
muitas vezes agressivamente – pontos de vista diferentes, ideologias
contrárias, sem ouvir, ler, comparar e fazer uma avaliação cuidadosa. Predomina
o devir, a embriaguez do teclar, a busca pelo exótico, pelos vídeos mais
bizarros, por ser aprovado pelos demais em detrimento de uma aprendizagem mais
rica, abrangente e profunda. Acontece frequentemente nas redes sociais, como o
Facebook ou Twitter, uma colaboração tão dinâmica quanto superficial, onde se
“retuitam” textos e imagens tolos, sem tempo para uma avaliação prévia, sem
medir os preconceitos arraigados, as agressões diretas ou indiretas e os danos que podem causar.
De um lado, pela colaboração
aberta vamos ampliando o conhecimento e a inteligência social: - a sociedade
aprende mais quanto mais as pessoas colaboram, intercambiam, trocam, reelaboram
– mas, por outro lado, pela personalização cada um consegue desenvolver trilhas
mais adaptadas ao seu perfil, expectativas e possibilidades reais.
A riqueza do contato com pessoas
com habilidades diferentes nos permite aprender muito além de onde chegaríamos
sozinhos. Mas para a sua consolidação, depois dessa interação mais social, necessitamos
fazer uma avaliação mais pessoal, um processo de decantação, de reavaliação do
que tudo o que no social tem a ver conosco, o que acrescenta à nossa síntese
anterior. Com esse movimento entre o grupal e a reflexão pessoal conseguimos
avançar mais: refletimos, comparamos, sintetizamos, escrevemos sobre, contamos
o que aprendemos, publicamos nossa visão modificada e a compartilhamos com os
demais. O compartilhamento favorece a retroalimentação, a devolução de
perspectivas externas que acrescentam visões que sozinhos não conseguiríamos
perceber, ampliando nossa síntese ou questionamento-a.
Aprendizagem
colaborativa num mundo digital
A educação é um processo rico,
constante e profundo de intercomunicação entre todos os participantes – alunos,
professores, gestores, famílias e os diversos entornos. Mesmo com tecnologias
digitais, continua sendo importante a comunicação afetiva e de intensa
comunicação entre pessoas incompletas, mas motivadas para evoluir, para
completar-se, para apoiar-se, para superar-se, para libertar-se. A comunicação entre professores e alunos nos
coloca frente a frente com narrativas diferentes, com muitas histórias de vida,
com várias metáforas de visualizar e representar o mundo. Essas histórias
pessoais compartilhadas nos ajudam a iluminar nossa trajetória, dificuldades e
sonhos. O clima de acolhimento, de confiança, incentivo e colaboração são
decisivos para uma aprendizagem significativa e transformadora.
O professor é um comunicador,
curador de conteúdos, um mediador entre pessoas diferentes que ajuda a que
todos consigam desenvolver as competências e conhecimentos esperados, no ritmo
e da forma mais adequada para cada um. A comunicação hoje é bidirecional e
multidirecional: O professor fala com todos, todos falam com ele e entre si e
cada aluno pode falar com o outro. É uma comunicação múltipla, diversificada,
flexível, muito rica e cheia de surpresas, porque cada interação modifica a
resposta seguinte, cada contribuição. A novidade da comunicação é que cada vez
é mais misturada, blended, parte em um mesmo espaço físico e parte em ambiente
virtual. Há comunicações que se fazem frente a frente fisicamente e outras
frente a frente virtualmente; umas em tempo real (físico ou virtual) e outras
em tempos diferenciados (offline).
A Web e as tecnologias móveis nos
permitem poder estar juntos em qualquer lugar, a qualquer hora para aprender de
múltiplas formas. O papel do professor é mais amplo do que antes, é o de ajudar
o aluno a encontrar sentido entre tantas informações, a avaliar as mais
relevantes e a estabelecer vínculos para uma comunicação rica entre todos. O
professor é também um orientador de grupos que interagem vivamente a partir de
atividades, de desafios em grupos e orientador de alunos que aprendem
individualmente, em ritmos diferentes.
O mundo digital é muito rico em
informações, materiais, atividades disponíveis para acesso de qualquer lugar.
Isso é muito positivo e atraente, principalmente para os que moram longe das
grandes cidades, mas traz uma facilidade de dispersão para todos, crianças e
adultos. É muito difícil concentrar-se, focar-se num tema específico por muito
tempo. O acesso contínuo a redes sociais traz informações interessantes, mas
tende a desviar-nos do objetivo inicial de um trabalho ou projeto, se não
estivermos muito atentos. Nunca tivemos tantas possibilidades de informação e
comunicação. Basta observar como muitas pessoas com um celular na mão trocam
mensagens com terceiros, mesmo em espaços
de convivência social. A educação hoje precisa equilibrar o contato físico e o
virtual, as atividades lúdicas com as mais estruturadas, as atividades mais
exploratórias com as mais focadas, concentradas, a colaboração e a
individualização.
O que a tecnologia traz hoje é
integração de todos os espaços e tempos. O ensinar e aprender acontece numa
interligação simbiótica, profunda, constante entre o que chamamos mundo físico
e mundo digital. Não são dois mundos ou espaços, mas um espaço estendido, uma
sala de aula ampliada, que se mescla, hibridiza constantemente. Por isso a
educação formal é cada vez mais blended, misturada, híbrida, porque não
acontece só no espaço físico da sala de aula, mas nos múltiplos espaços do
cotidiano, que incluem os digitais. O professor precisa seguir comunicando-se
face a face com os alunos, mas também digitalmente, com as tecnologias móveis,
equilibrando a interação com todos e com cada um.
O digital facilita e amplia os
grupos e comunidades de práticas, de saberes, de coautores. O aluno pode ser
também produtor de informação, coautor com seus colegas e professores,
reelaborando materiais em grupo, contando histórias (story telling), debatendo
ideias num fórum, divulgando seus resultados num ambiente de webconferência,
num blog ou página web.
Essa mescla, entre sala de aula e
ambientes virtuais é fundamental para abrir a escola para o mundo e para trazer
o mundo para dentro da escola. Uma outra mescla, ou blended é a de prever
processos de comunicação mais planejados, organizados e formais com outros mais
abertos, como os que acontecem nas redes sociais, onde há uma linguagem mais
familiar, uma espontaneidade maior, uma fluência de imagens, ideias e vídeos
constante.
As tecnologias WEB 2.0,
gratuitas, facilitam a aprendizagem colaborativa, entre colegas, próximos e
distantes. Cada vez adquire mais importância a comunicação entre pares, entre
iguais, dos alunos entre si, trocando informações, participando de atividades
em conjunto, resolvendo desafios, realizando projetos, avaliando-se mutuamente.
Fora da escola acontece o mesmo, a comunicação entre grupos, nas redes sociais,
que compartilham interesses, vivências, pesquisas, aprendizagens. Cada vez mais
a educação se horizontaliza e se expressa em múltiplas interações grupais e
personalizadas.
A comunicação através da
colaboração se complementa com a comunicação um a um, com a personalização,
através do diálogo do professor com cada aluno e seu projeto, com a orientação
e acompanhamento do seu ritmo. Podemos oferecer sequências didáticas mais
personalizadas, monitorando-as, avaliando-as em tempo real, com o apoio de
plataformas adaptativas, o que não era possível na educação mais massiva ou
convencional. Com isso o professor conversa, orienta seus alunos de uma forma
mais direta, no momento que precisam e da forma mais conveniente.
Conclusão
Na educação formal uns projetos
pedagógicos dão mais ênfase à aprendizagem colaborativa, enquanto outros à
aprendizagem individualizada. Ambos são importantes e precisam ser integrados
para dar conta da complexidade de aprender na nossa sociedade cada vez mais dinâmica
e incerta.
Um bom projeto pedagógico prevê o equilíbrio entre tempos de
aprendizagem pessoal e tempos de aprendizagem colaborativa. Aprendemos com os
demais e aprendemos sozinhos. Focar mais um ou outro lado dificulta a visão do
todo, da riqueza de possibilidades. Sozinhos vamos até um certo ponto; juntos,
também. Essa interconexão entre a aprendizagem pessoal e a colaborativa, num
movimento contínuo e ritmado, nos ajuda a avançar muito além do que o faríamos
sozinhos ou só em grupo. Os projetos pedagógicos inovadores conciliam, na
organização curricular, espaços, tempos e projetos que equilibram a comunicação
pessoal e a colaborativa, presencial e online.
Num mundo de tantas informações,
oportunidades e caminhos, a qualidade da docência se manifesta na combinação do
trabalho em grupo com a personalização, no incentivo à colaboração entre todos
e, ao mesmo tempo, à que cada um possa personalizar seu percurso. O professor se
torna cada vez mais um gestor e orientador de caminhos coletivos e individuais,
previsíveis e imprevisíveis, em uma construção mais aberta, criativa e empreendedora.
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Para saber mais
Textos sobre comunicação e
educação do Prof. Moran encontram-se no livro Desafios na Comunicação Pessoal. São Paulo: Paulinas, 3ª Ed, 2008,
no livro A Educação que desejamos: novos
desafios e como chegar lá, 5ª Ed, Papirus, 2012 e em textos complementares
na página pessoal da USP: www2.eca.usp.br/moran,
principalmente no tópico Desafios pessoais: http://www2.eca.usp.br/moran/?page_id=12
Textos de Marcos Silva e outros
autores sobre Interatividade na sala de
aula. http://www.saladeaulainterativa.pro.br/textos.htm
ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. Lisboa: Moraes
Editores, 1984.
Texto Moran - Publicado na Revista Educatrix,
n.7, 2014. Editora Moderna, p. 52-37
Comentários
Josiani
Abraço. Moran