O futuro que vivi e o futuro que vislumbro


Vivi transformações profundas ao longo de muitas décadas. Vivi muitos anos no analógico, com poucos recursos econômicos, forte influência religiosa e uma educação conservadora, de boa qualidade, mas pouco criativa e empreendedora, que começou na Espanha e continuou no Brasil. A escola olhava para o passado, para os clássicos, para entender o presente e projetar o futuro. Fui educado para ser uma boa pessoa, acreditava ter vocação religiosa e que minha vida estava definida como alguém que ensinaria os outros a encontrar significado nesta e em uma futura vida.

Ao sair do projeto religioso, encontrei na educação o caminho profissional mais viável para meu perfil. Dei muitas aulas em Faculdades de Comunicação, enquanto fazia Mestrado e Doutorado na USP. Me interessei pela educação midiática, pelas novas tecnologias e seu impacto na educação e nas famílias. Vivi a lenta transição do analógico para o digital. A descoberta da Internet me impactou profundamente. Foi uma fase muito rica a de imaginar o futuro e experimentar nas aulas as novas possibilidades de aprender em diversos espaços e tempos (aulas híbridas, educação a distância).

Imaginava um futuro muito mais conectado, com pessoas interagindo a qualquer hora, de qualquer lugar e de múltiplas formas. Pierre Levy era uma referência importante com o conceito da inteligência coletiva. Pesquisas apontavam que a escola se abriria muito mais para o mundo e que aprenderíamos em rede, pela colaboração e compartilhamento. Pensávamos que as escolas e universidades se transformariam profundamente em poucos anos e que o digital nos ajudaria a ser mais curiosos, flexíveis, criativos, o que contribuiria para vivermos em uma sociedade mais democrática e justa.

Na realidade a evolução da educação foi mais lenta e difícil do que o esperado. Há um claro descompasso entre as expectativas e a realidade. Sem dúvida houve avanços significativos no redesenho de escolas inovadoras, mais participativas e democráticas, com mais ênfase em projetos, experimentação, metodologias ativas. Houve avanços na universalização do acesso, na avalição de desempenho. Mas o cenário geral é bastante decepcionante: escolas ainda muitos burocráticas, pouco criativas, infraestrutura precária, docentes sobrecarregados e com formação continuada deficiente.

As redes sociais ofereciam, apesar de privilegiar o entretenimento, muitas oportunidades de aprendizagem por pares, de compartilhamento de boas práticas. Participei de muitos grupos de metodologias ativas, modelos híbridos, educação a distância.

Nos últimos anos ficou muito evidente que o entretenimento, os jogos, o uso intensivo das redes trouxeram desafios enormes para o desenvolvimento pessoal e para a educação. Crianças e adultos ficaram ostensivamente reféns do celular em todos os momentos. Conversam o tempo todo com as mesmas pessoas, grupos, o que reforça suas ideias e os distanciam dos que pensam diferente.  Os jogos são fascinantes, imersivos, cheios de surpresas, com múltiplos parceiros em tempo real. Os vídeos são curtos, divertidos, sobre temas que interessam e se sucedem num carrossel interminável que aumenta a dopamina.  São vídeos muito diferentes dos “educativos”, das aulas gravadas pelos professores. A concorrência é desleal.

Não imaginávamos o impacto das redes sociais na vida, o grau de dependência e ansiedade que geraram.  Há um descompasso crescente entre a evolução tecnológica, científica e a humana.  Tudo está a um toque de tela, a um comando de voz. São tantas as possibilidades, as escolhas, as recompensas que nos perdemos e afundamos como em um pântano lamacento. “Conversamos” com plataformas artificiais que parecem entender-nos, que são amáveis, afetivas, sempre disponíveis. Ao mesmo tempo está diminuindo a capacidade de dialogar com as pessoas próximas, com as que pensam diferente, de pensar criticamente. Aumenta o individualismo, o narcisismo, o imediatismo, a impaciência, a ansiedade. Tudo é provisório e fugaz. Queremos tudo agora, já: viver experiências inesquecíveis em todos os campos. Consumimos muitas coisas, lugares, pessoas; escondemos a dor diante de um futuro incerto, fugaz, instável.

Alguns valores como a democracia e o cuidado com os mais necessitados estão em baixa. Há uma ênfase maior nas soluções individuais do que nas coletivas. Entendo o clamor pela proibição dos celulares nas escolas, a não ser para fins pedagógicos. Isso só comprova o alto grau de dependência do digital da maioria e como é difícil educar em casa e na escola para sermos menos consumistas, solidários e livres. Educar é cada vez mais complexo neste cenário de tantas possibilidades e desafios.

Para onde caminhamos?

Estamos em um período diruptivo, que começa a impactar todo o processo de ensinar e de aprender. Eu imaginei que aprenderíamos em qualquer lugar, a qualquer hora e de múltiplas formas. Mas não imaginava este futuro com IA. Não imaginava que qualquer pessoa pudesse “conversar comigo” como acontece no ambiente auroramoran.com.br[1]

Agora começamos a ter “companheiros virtuais”, professores que me “conhecem”, que são meus “amigos, “confidentes” e com os que posso estabelecer uma relação de “intimidade” a qualquer hora, sempre de bom humor. Professores com os que posso contar na hora que precisar, que têm paciência infinita para explicar-me o que não entendi. Esse é o mundo real que está aí chegando.

Diante dos avanços atuais e das perspectivas da inteligência artificial, precisamos fazermos algumas perguntas difíceis. Como cada um aprende melhor em cada fase da vida? Quando o professor é insubstituível e quando não? Como combinar e integrar o melhor do professor humano e do professor digital em cada etapa do currículo?

Crianças pequenas precisam de muito mais supervisão e interação humana. Estamos de acordo. E depois? A compreensão de conceitos, a aprendizagem por domínio pode ser realizada principalmente por plataformas inteligentes confiáveis (conteúdos gamificados, adaptados às necessidades de cada estudante). E a compreensão mais profunda, fruto do diálogo e da experimentação pode ser realizada pela mediação do professor humano. Boa parte do que o professor faz hoje em aula (explicar, tirar dúvidas) pode ser feito com qualidade por plataformas e o processo mais criativo, experiencial, reflexivo pode ser feito por professores. Um exemplo desta proposta é feita pelas Escolas Alpha, nos EUA: os alunos estudam os conteúdos curriculares (Matemáticas, Ciências, Física, Química..) em plataformas, com planos de ensino personalizados, com apoio de tutores, duas horas por dia. O restante do tempo é dedicado a realizar projetos em grupo interessantes, a desenvolver competências para a vida, com a liderança dos professores[2].  É uma experiência que aponta para diversos arranjos que acontecerão nos próximos anos, que exigirão muito equilíbrio e avaliação para testá-las com seriedade. O importante é que cada um aprenda o máximo possível, com os melhores recursos humanos e tecnológicos disponíveis a um custo razoável.

Intuitivamente me parece que o currículo mais equilibrado na Educação Básica é o que os alunos alternam os tempos individuais de aprendizagem (com plataformas), os tempos grupais de experimentação/análise/produção (mais interdisciplinares) e os tempos de mentoria (orientação acadêmica e de vida). A escola é um espaço rico de ambientes e experiências de aprendizagem, com desenhos de processos cada vez mais distantes dos industriais que vivenciamos durante tantas décadas.

Entendo que este cenário está muito distante para a maioria das escolas, principalmente as públicas. Além da desigualdade, as mudanças do modelo mental do que é uma escola estão tão enraizadas na sociedade, que demorarão muito para serem aceitas.

No Ensino Superior, com certeza os impactos serão mais profundos. Avançaremos para modelos mais flexíveis, personalizados, intensamente experienciais, com fortíssima ênfase em plataformas com IA combinados com alguns momentos fortes de participação com docentes experientes. Alguns países nos mostrarão esses caminhos antes, porque, aqui, ao menos no curto prazo, estamos presos a um paradigma que confunde qualidade com presencialidade síncrona de alunos e professores.

Como vejo a educação no futuro? No fundo, repetiremos o cenário do que estamos vivenciando nas últimas décadas. Uma parte das pessoas vai aproveitar todo este maravilhoso mundo para aprender de verdade, para evoluir intelectualmente, socio emocionalmente, para serem mais empreendedores, para viver uma vida melhor. E outra grande parte vai utilizar a IA para “aprender” com o mínimo esforço, para buscar uma certificação da forma mais fácil, para tentar aparentar que sabe (marketing pessoal), porque prefere o entretenimento, a busca de lucro fácil (bets), seguir os “influencers” e a lei do mínimo esforço.

É ilusão pensar que a tecnologia salvará a educação. Nunca tivemos tantas oportunidades de aprender, mas a grande maioria o faz por obrigação; não consegue descobrir (por inúmeras razões) o gosto de aprender, o encanto de desenvolver competências mais amplas para viver uma vida mais interessante, produtiva e plena.

Transformar as escolas é uma tarefa gigantesca, mas necessária para termos uma sociedade melhor. A transformação mais difícil é tornar o aluno mais protagonista, criar uma escola acolhedora, humanista, sustentável, solidária e avançada digitalmente. A sociedade também “ensina” valores e visões de mundo que podem iludir mais do que libertar. Muitos jovens e adultos se encantam com falsas promessas e não aprendem a realizar as melhores escolhas e vão se perdendo nos seus projetos de vida, tornando-se progressivamente mais consumistas, acomodados, angustiados ou medíocres. São imensas as oportunidades e desafios de redesenhar escolas e universidades para que se tornem mais relevantes e também ofertar formação continuada para adultos para que vivam uma vida com o maior bem-estar possível.[3]

José Moran

Professor, escritor e pesquisador de projetos educacionais inovadores

Autor do blog Educação Transformadora e da IAMoran


[3] Este texto complementa um vídeo em que falo sobre Luzes e Sombras da Educação do Futuro

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