Relacionamentos com vínculos superficiais ou profundos

 
Os nossos relacionamentos vão se construindo com o tempo, em camadas cada vez mais profundas, que exigem níveis de troca, de diálogo e acertos cada vez mais delicados, na construção de vínculos progressivamente mais complexos. Numa comparação simples, assemelham-se ao descascar  de uma cebola: começamos pelas folhas mais externas e visíveis, mas as consolidamos - ou não -  nas mais internas e profundas.

 No começo de um relacionamento desejamos, percebemos, valorizamos e interagimos com as camadas mais externas do outro: a sua aparência, cada pedaço do seu corpo, as ricas sensações sensoriais que recebemos e expressamos por todos os sentidos e linguagens, principalmente através do olhar, do ouvir e do tocar.

Isso nos leva a um segundo nível de interação em camadas que misturam o sensorial e o emocional: paixão, prazer, o gosto de estar juntos, inebriados com a presença, o toque, o prazer intenso de estar com quem amamos, de compartilhar cada detalhe da vida e dos projetos de curto e médio prazo.

A convivência intensa desvenda níveis crescentes de intimidade, com a necessidade de equacionar formas mais complexas de interagir, de negociar diferenças, de lidar com divergências, com valores diferentes. Geralmente começamos fazendo esforços intensos de contorcionismo diante das diferenças, evitando o confronto direto, procurando mais o que nos aproxima do que o que nos separa, insistindo mais no que nos une do que nos diferencia. Esforçamo-nos por encontrar o máximo denominador possível: cedemos no que não nos parece essencial, acomodamos as visões conflitantes de forma mais ou menos satisfatória ou tranquilizadora. Mas a tensão pode permanecer incubada, se estiver mal resolvida, e vai aparecer em momentos de confronto com tomadas de decisão conflitantes (profissionais, familiares, projetos pessoais importantes). 

Com o tempo, em alguns momentos, as diferenças aparecem mais claramente e cada um explicita o que é realmente importante, fundamental no sua vida e que não quer abrir mão. É o tempo das negociações profundas, das aproximações complexas, de tentativas de acordos possíveis, cedendo um pouco de ambos os lados, para tentar preservar a identidade pessoal e a relação a dois. É nesta etapa que se define de verdade se o relacionamento será bem sucedido – evoluindo para um entendimento mais pleno - ou tenderá a complicar-se, a radicalizar posições, a exigir mudanças no outro sem contrapartida. Os relacionamentos duradouros bem sucedidos conseguem, nesta etapa, equilibrar o que os diferencia e o que os une, estabelecendo pactos conscientes/inconscientes de entendimento que são satisfatórios, viáveis e que impõem o menor desgaste possível, apesar das diferenças existentes. Não mascaram as divergências, mas procuram integrá-las ao máximo, preservando o vínculo afetivo, a compreensão e o acolhimento, enfatizando mais as semelhanças do que as diferenças. Aprendem a valorizar mais o que os une do que o que os pode separar.

Se este nível de acordos é mais satisfatório do que insatisfatório, se os dois lados se sentem mais contemplados e aceitos do que, de alguma forma, com a sensação de estar cedendo demais a contragosto, a tendência é a de conseguir manter o relacionamento de forma mais sólida, consistente e duradoura. Esses acordos profundos relativizam e compensam alguma diminuição da empolgação sensorial -do intenso contato físico das primeiras etapas -  valorizando a importância de equilibrar o tempo juntos e os tempos pessoais, as atividades individuais e conjuntas, avançando no aprofundamento dos laços em todas as dimensões da vida.

Quando um relacionamento se constrói só nos primeiros níveis ou camadas, e se mantém pela paixão ou pela obrigação (filhos) ou por algum medo (da solidão, por exemplo), a tendência é a de não investir tanto no entendimento profundo (“o outro é que tem que mudar”), de não valorizar tanto tudo o que favorece a união e de destacar mais o que nos incomoda no outro do que o que nos realiza. É a fase das cobranças, dos desentendimentos, das acusações explícitas ou ressentidas ou da indiferença progressiva.

Muitos não sobrevivem a essa falta de intimidade e confiança profunda e se separam; outros tantos permanecem “amarrados” mutuamente, mas sentindo-se intimamente insatisfeitos, percebendo um distanciamento íntimo progressivo, embora até possam manter externamente as aparências de um casal bem sucedido (para muitos “parecer felizes” é mais importantes do que sê-lo de verdade).

A vida nos oferece a possibilidade de aprender a construir relacionamentos que valem a pena, que nos realizam além das aparências, que criam vínculos profundos. Mas, como em outros campos, essa competência precisa ser desenvolvida com cuidado, observação, atenção e avaliação. A grande vantagem de nosso tempo é que temos a possibilidade legal e real de rever decisões de conviver com outro que pareciam definitivas, mas que não se confirmam, e de começar novas experiências de relacionamento diferentes das anteriores, que possam nos realizar muito mais, se estivermos preparados.

Mas se não aprendemos com as experiências, erros e reavaliações, corremos o risco de continuar repetindo modelos prontos de comportamento, de buscar as mesmas pessoas e situações em novos relacionamentos e de repetir modelos que se revelarão insatisfatórios com o tempo. Uns aprendem com os “fracassos”, outros repetem os mesmos procedimentos com pessoas diferentes, aparentemente, e por isso reclamam de que os relacionamentos são datados, que não dão certo no longo prazo e de que é melhor estar sós do que mal acompanhados.

Uma das maiores realizações que a vida nos permite e desafia é a de poder evoluir cada vez mais como pessoas em todas as dimensões para poder construir percursos mais realizadores também na convivência com alguém em quem podemos, com o tempo, confiar de verdade e com quem a convivência diária traz muito mais realizações do que problemas. 
 
 

Texto pessoal que reelabora o tema Equilibrando aceitação e Mudança,
                         do meu livro Aprendendo a Viver, 6ª Ed. SP, Paulinas, 2011, p. 58-59

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